Elionice Sacramento é uma jovem mestre pesqueira, o que significa dizer que conhece o movimento da lua, dos ventos, das marés e, sobretudo, que cuida de sua comunidade e dos recursos naturais.
Membro de uma família tradicional de pescadores do município de Salinas da Margarida, no Recôncavo baiano, ela é a caçula de 10 irmãos e, desde os cinco anos, já acompanhava o pai no mar. Hoje, aos 30, integra o Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais, que lançou uma campanha nacional pela regularização de seus territórios. Para alcançar o objetivo, eles precisam da assinatura de 1% do eleitorado brasileiro, o equivalente a 1.406.466 assinaturas, em um abaixo assinado para aprovação de um Projeto de Lei (PL) de iniciativa popular que visa o reconhecimento, a proteção e a garantia do direito ao território das comunidades tradicionais pesqueiras.
Nessa entrevista à Rede Mobilizadores, Elionice fala sobre a campanha e conta as principais dificuldades enfrentadas pelos pescadores e pescadoras tradicionais diante do crescente avanço de grandes projetos econômicos em áreas historicamente utilizadas pelas comunidades tradicionais, ameaçando seu território e patrimônio cultural. Fala também da invisibilidade a que pescadores e pescadoras estão submetidos na sociedade brasileira e sobre a visão estereotipada pela qual muitos ainda são distinguidos.
A pesca artesanal responde por cerca de 70% do pescado produzido no país, sendo fundamental para garantir a segurança alimentar e nutricional da sociedade brasileira.
Rede Mobilizadores – O que levou à criação do Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais?
R.: De um lado a outro do Brasil, estamos vivendo um processo intenso de perda dos territórios. Com isso, a gente se deu conta da importância de nos organizarmos e fazermos lutas conjuntas. Os pescadores e pescadoras têm figurado no cenário brasileiro desde a chamada Constituinte da Pesca, quando se organizavam a partir de três estados: Bahia, Ceará e Pernambuco. Depois, começaram a entender a importância de se articular e, há cerca de 10 anos, surgiu de forma mais orgânica, em 11 estados, o movimento dos pescadores e pescadoras. Hoje, estamos presentes em 17 estados.
Em 2009, quando o governo nos chamou para participar da 3ª Conferência da Pesca, organizada pelo Ministério da Pesca e Aquicultura, nós acreditamos que seria um espaço criado para nos representar, mas logo percebemos que o objetivo era atender os interesses da pesca industrial e da aquicultura em grande escala. Em função disso, decidimos fazer uma conferência paralela a do governo. Para isso, acampamos em Brasília. Foram mais de mil pescadores e pescadoras de todo o Brasil, divididos em tendas temáticas (saúde, direitos trabalhistas) e, em todas elas, a preocupação com o território aparecia muito forte.
Rede Mobilizadores – Quais são as principais ameaças que os pescadores e pescadoras artesanais vêm sofrendo?
R.: Sofremos ameaças da indústria do petróleo; dos parques eólicos, que chegam com o discurso da energia limpa, mas acabam expulsando as comunidades tradicionais de seu território, além de afugentarem os animais da região pelo movimento que produzem. Também sofremos com as hidrelétricas, as termelétricas, com a chegada de estaleiros navais, que causam impacto para sua instalação e também promovem dragagens nas áreas de pesca. Mas a principal ameaça é a privatização das águas dos rios e mares, o que nos causa muito espanto.
A gente já tem um histórico no Brasil de todo o impacto causado pela criação de camarão em cativeiro, que destrói o manguezal, escava a terra e, no processo de despesca (retirada do organismo cultivado do viveiro), lança resíduos químicos no mar. Além de o camarão do mar não conseguir competir com os camarões de cativeiro, afetando nossa produção, convivemos com um histórico de crimes de morte para manter essa estrutura.
Rede Mobilizadores – Você pode estimar o volume de perdas que tiveram com a criação de camarão em cativeiro?
R.: Sou de uma família tradicional de pescadores e pescadoras, do Recôncavo baiano. Meus avós, meus pais, eu e meus irmãos, todos vivemos da atividade pesqueira. Quando eu era criança, meu pai quando saia para pescar trazia três balaios de camarão, o que dava cerca de 80 a 90 quilos. Hoje, consideramos uma produção muito boa se conseguimos pegar de 5 a 8 quilos de camarão.
Isso reflete a realidade do Brasil. E não é porque não existe viabilidade econômica para a pesca artesanal, como o governo insiste em dizer, é porque existem questões que não se quer enfrentar, como a poluição química e o conjunto de impactos ambientais que esses espaços vêm sofrendo. Nós estamos perdendo nossos territórios para diversos empreendimentos que se instalam na beira do mar e do rios nos diferentes estados do Brasil.
Foi por isso que percebemos a necessidade de criar um instrumento que pudesse minimamente proteger nossos territórios. Para identificar que instrumento poderia ser esse, convidamos alguns estudiosos (antropólogos, geógrafos, advogados) para conversar conosco sobre esse anseio e chegamos à conclusão coletiva de que o melhor recurso seria uma campanha e o lançamento de um projeto de lei de iniciativa popular para regularizar o território das comunidades tradicionais pesqueiras.
A gente poderia ter procurado um político para apresentar essa proposta, mas como vivemos um processo de invisibilidade, de tentativa de negação, achamos que o mais conveniente seria fazer o caminho mais difícil. A campanha nos permite apresentar para a sociedade brasileira tudo o que está acontecendo e mostrar a nossa importância.
Rede Mobilizadores – Quando a campanha foi lançada e no que consiste?
R.: A partir de 2011, começamos a promover conversas mais profundas entre nós, para falarmos sobre nossa importância e para estudar o que existia sobre nós no Ministério da Pesca, no Ministério do Meio Ambiente, e em outras estruturas. O que nos empoderou muito foi descobrir que, pelos dados oficiais, nós somos responsáveis por 70% dos pecados produzidos no Brasil. Isso nos deu uma autoestima muito grande. A partir disso, começamos a realizar caravanas por cidadezinhas de cada estado para conversar com os pescadores e pescadoras e explicar o objetivo da campanha.
O lançamento da campanha foi em junho de 2012, em Brasília. Reunimos cerca de 2 mil pescadores e pescadoras que levaram para a capital federal uma grande mesa de pescados. A campanha conta com um blog e está também no Facebook. Estamos no caminho para coleta de assinaturas. Precisamos da assinatura de 1% da sociedade brasileira. A princípio, a campanha segue até junho de 2015.
Rede Mobilizadores – Como você avalia os primeiros resultados da campanha?
R.: A campanha tem sido importante não apenas para conseguirmos as assinaturas, mas para nos articularmos e nos fortalecermos. Ela tem propiciado desconstruir uma lógica que a sociedade estabeleceu sobre a nossa imagem. Quando as pessoas pensam no pescador e na pescadora, geralmente pensam em pessoas vestidas de roupas de saco, de pés no chão, que não sabem e não gostam de se organizar. Temos podido ocupar espaços, fazer debates e temos provado para a sociedade brasileira que somos sujeitos e que estamos protagonizando a nossa própria história.
Rede Mobilizadores – Qual a representatividade da mulher na pesca, quantas vocês são?
R.: Não existe uma estatística nacional sobre o número de pescadores e achamos até que é algo proposital. Na campanha, uma das nossas propostas é fazermos uma estatística. Percebemos que precisamos saber quantos somos e quanto produzimos de verdade.
Mas, para você ter uma noção, o meu município, Salinas da Margarida, tem 14 mil habitantes. Desses, a população adulta é de cerca de 7 mil pessoas, das quais 5.800 são pescadores e pescadoras. Isso se repete em várias cidades litorâneas.
Na minha cidade, a maioria dos pescadores são mulheres. Só que elas vivem um processo de invisibilidade ainda maior do que os homens, porque na cadeia produtiva pesqueira a mulher não é vista como a que realiza a atividade. Ela sempre foi vista como aquela que ajuda o marido ou os pais. Na nossa documentação não existe a classificação pescadora, marisqueira ou beneficiadora de marisco. Existe apenas a carteira do pescador. É uma atividade patriarcal.
As mulheres têm uma carga horária de trabalho muito grande. Nós geralmente somos responsáveis por fazer a captura, o beneficiamento e a comercialização. Existem estudos da Universidade Federal da Bahia que provam que nossa carga horária varia de 12 a 16 horas diárias.
A minha experiência é essa também. Acordo às 4 horas da manhã, vou para a atividade e ela se estende até à noite. Às vezes, até 11 horas, meia noite. E a gente ainda tem de conciliar o trabalho com as atividades familiares, com o cuidado com os filhos e com o processo de organização comunitária, que geralmente são as mulheres que protagonizam.
As mulheres sofrem muitos preconceitos. Aquelas que chegam num posto da Previdência Social de cabelo escovado, de unhas feitas não são reconhecidas como pescadoras. No imaginário da sociedade brasileira, nós somos as coitadinhas, cheiramos mal. Temos travado uma luta intensa pelo reconhecimento dos nossos direitos trabalhistas e previdenciários e também pelo reconhecimento das doenças ocupacionais.
Rede Mobilizadores – Quais são as principais doenças das quais vocês são vítimas?
R.: As principais são os problemas na coluna vertebral, lesões por esforço repetitivo, problemas decorrente da poluição, processos alérgicos e problemas de visão pelo reflexo do sol na água e na rede. Um outro problema que temos discutido é que, para nos protegermos dos mosquitos nos manguezais, usamos muito óleo diesel como repelente e, ao longo do tempo, isso tem levado ao desenvolvimento de câncer de pele. Por isso, temos apresentado pauta ao Ministério da Saúde para distribuição de protetor solar e de repelentes. Mas isso não para fortalecer a indústria farmacêutica, mas que se pense formas de desenvolver produtos caseiros ou artesanais.
Rede Mobilizadores – O que é ser um mestre pesqueiro?
R.: Nas comunidades pesqueiras, ser mestre é dominar os conhecimentos de lua, marés, ventos, é saber respeitar os processos da natureza e, sobretudo, saber respeitar o outro, o companheiro de atividade (chamado de moço).
Lembro que quando era criança, eu e minha família saímos numa canoa de madeira para pescar e caiu um forte temporal, o que nos obrigou a passar a noite toda refugiados numa ilha. Depois, meu pai percebeu que tinha chuva para três dias e que não iríamos suportar ficar lá todo esse tempo. Ele então nos chamou para conversar e passar os conhecimentos do mar, para avaliarmos se iríamos ou não voltar para casa. Ele disse que a gente precisava voltar, mas que um mestre não tem direito de decidir sobre a vida de seus moços, mesmo sendo eles sua mulher e seus filhos. Ele explicou que, para voltarmos, a gente deveria escolher a beira dos costeiros, e nos falou que iríamos encontrar uma cerração muito grande, além de muita chuva. Nós, então, dissemos a nosso pai que confiávamos nele, e ele nos retrucou dizendo que confiava na lua, nos ventos, nas águas. Então, ser mestre é saber a hora de enfrentar, saber a hora de voltar, saber onde o peixe está cortando, saber o curso da natureza, mas, sobretudo, saber cuidar da comunidade e dos recursos naturais.
Tornar-se mestre é algo que se conquista no processo. Geralmente, a pessoa inicia sendo moço e depois, quando domina melhor o desempenho das atividades e o relacionamento com os demais, é considerada e tratada como um mestre, mesmo que o mestre mais velho esteja presente.
Entrevista concedida à: Eliane Araujo
Editada por: Sílvia Sousa