Instituído legalmente em 1988 e regulamentado dois anos depois, o Sistema Único de Saúde (SUS) é universal, pois todos os brasileiros, independente de classe social, podem usar os serviços ofertados por ele.
Entretanto, apesar de o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicar que mais de 50% da população brasileira faz uso de algum serviço do SUS, boa parte dos brasileiros desconhece a amplitude do sistema, que envolve não só ações de assistência à saúde, como também de promoção, proteção e prevenção.
De acordo com Marismary Horsth De Seta, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), da Fiocruz, para aumentar a visibilidade do SUS entre a população do país é preciso melhorar não só a qualidade dos serviços por ele prestados, como também a gestão e o uso dos recursos.
Marismary sinaliza que houve avanços na oferta dos serviços do SUS em todo o país a partir da expansão do que era o Programa de Saúde da Família, e se transformou na Estratégia da Saúde da Família (ESF), mas ressalta que há muito mais a se fazer.
Mobilizadores COEP – Quando foi criado o Sistema Único de Saúde (SUS)?
R.: O SUS foi instituído legalmente em 1988, com a promulgação da Constituição Brasileira, e representou um marco no desenvolvimento da cidadania no Brasil. Uma conquista, fruto de uma Emenda Popular apresentada à Assembléia Nacional Constituinte, e uma arena de disputas de atores, de interesses – o volume de recursos que ele movimenta é significativo – e de projetos políticos, muitas vezes divergentes, o que se pode perceber na sua regulamentação e nos avanços, mas também nos retrocessos e impasses que se apresentam. A regulamentação inicial do SUS ocorreu dois anos mais tarde, em 19 de setembro de 1990, com a publicação da Lei Orgânica da Saúde (LOS).
Mobilizadores COEP – O que é o SUS? Quais suas principais atribuições?
R.: O SUS é um sistema de saúde universal, na medida em que todos têm direito a usá-lo, sem distinção de poder aquisitivo e da classe social. Assim, todo cidadão brasileiro, sem exceção, tem direito a se beneficiar de todos os serviços ofertados por este Sistema, ou seja, das ações de promoção, proteção, prevenção e assistência à saúde. Em face da complexidade do SUS, há dois campos de ação onde essas ações de natureza coletiva e individual se desenvolvem.
Primeiramente, o campo das ações de caráter coletivo. Embora a assistência à saúde seja muito enfatizada, são tarefas indelegáveis do SUS a vigilância epidemiológica e ambiental em saúde, o controle de doenças, e a vigilância sanitária. A vigilância sanitária é responsável pelo controle sanitário de tecnologias e produtos (medicamentos, alimentos, sangue, vacinas e equipamentos de uso médico) e de serviços de interesse da saúde (serviços de saúde e outros serviços e ambientes de uso coletivo, tais como salões de beleza, restaurantes, supermercados). O controle sanitário se faz pelas atividades de elaboração de normas sanitárias e da fiscalização do seu cumprimento, pela atividade de concessão de registro e de autorizações para o exercício de atividades econômicas de produção de bens e de prestação de serviços, pelo monitoramento dos riscos, das reações e eventos adversos e da qualidade de produtos e serviços.
Essas ações preventivas, de proteção e de promoção da saúde são realizadas na esfera federal pelo Ministério da Saúde e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, e nos estados e municípios, pelas respectivas Secretarias de Saúde.
Quanto à assistência à saúde, da rede assistencial do SUS participam os serviços públicos ofertados pela esfera federal, estadual e municipal de governo, bem como o setor privado, de forma complementar. A maior parte dos procedimentos de hemodiálise e dos transplantes de órgãos, realizados em serviços privados, são pagos com recursos públicos, bem como a distribuição de medicamentos do programa da Aids à Farmácia Popular.
Mobilizadores COEP – Como se dá a participação do setor privado?
R.: O setor privado se subdivide em lucrativo e não lucrativo. Os serviços privados lucrativos são mantidos, principalmente, pela compra individual ou por parte de empresas, de planos de saúde. Assim, o setor privado lucrativo abrange o segmento de saúde suplementar. É importante frisar que esse setor privado lucrativo participa do SUS como “setor regulado”, tendo que cumprir as normas sanitárias e ter o seu funcionamento autorizado e fiscalizado pela vigilância sanitária, no que diz respeito aos estabelecimentos, e pela Agência Nacional de Saúde, no que diz respeito aos planos de saúde.
Os serviços privados não lucrativos, que são serviços reconhecidos como “filantrópicos” – como as Santas Casas e as organizações de grupos de imigrantes, como os Hospitais Albert Einstein, as Beneficências e o Hospital Sírio e Libanês – participam da rede de prestação de assistência do SUS como serviços contratados ou conveniados. Os serviços filantrópicos também participam do mercado e nem todos cumpriam o requisito fundamental para a filantropia, de terem 60% de seu atendimento destinado ao SUS. Por uma lei de 2009, essa exigência se manteve, mas agregou-se a execução de outras atividades não assistenciais para a concessão, pelo Ministério da Saúde, da Certificação das Entidades Beneficentes de Assistência Social na área da Saúde (CEBAS). Desse modo, no momento, cinco hospitais de São Paulo, e um do Rio Grande do Sul, reconhecidos como “hospitais de excelência”, podem firmar convênios, até para o desenvolvimento institucional do próprio SUS.
De modo geral, os recursos financeiros que os serviços privados – lucrativos ou não – recebem diretamente do Estado, ou indiretamente, como renúncia fiscal*, são importantes para sua manutenção.
Com essa breve resposta espera-se ter alcançado uma caracterização do SUS, reiterando-se o seu caráter universal e abrangente, não redutível aos serviços de assistência à saúde, muito menos aos de propriedade do Estado, mas também sugerir a necessidade contínua de mobilização da sociedade, principalmente na sua fração voltada para o interesse das camadas populares, para que se aprofundem os avanços na construção dessa política pública.
Mobilizadores COEP – Os serviços do SUS chegam a todas as comunidades rurais e/ou a comunidades isoladas do país? De que forma?
R.: A resposta a essa pergunta também não é simples, pois, o Brasil além de muito extenso, é um país muito desigual. Desigual, na distribuição de bens e de riqueza, e diverso na sua topografia. Existem regiões isoladas, em que o acesso é dependente das condições climáticas, por exemplo, a região Amazônica – e até nessa região há diferenças entre os estados–, e o Pantanal. Grosso modo, todavia, se supõe que algum serviço do SUS chegue, mesmo sem a regularidade desejada, ou de forma episódica, a todos as comunidades.
Pode-se dizer que houve uma ampliação dos serviços do SUS, em todo o país, principalmente da atenção primária, desde os anos 1990, com a expansão do que era o Programa de Saúde da Família, e se transformou na Estratégia da Saúde da Família (ESF).
Com o processo de descentralização da rede de serviços do SUS e da tensão para regionalizar e “hierarquizar”, a rede de serviços aumentou bastante em todo o país. (o verbo é usado entre aspas como uma provocação à discussão, à medida que ele pode ser entendido como mando verticalizado e descendente, neste momento em que se afirma que a atenção primária é a “organizadora da rede de atenção”).
A expansão da expansão da estratégia da saúde da família tem sido destacada, contudo, persistem desigualdades territoriais na distribuição dos serviços públicos e privados de saúde entre as regiões, e em cada região. Essas desigualdades são ainda maiores em relação à oferta concentrada de certos equipamentos, tecnologias e serviços de alta densidade tecnológica nas áreas mais populosas, de maior potencial de geração de riqueza e de maior dinamismo econômico.
Temos que pensar que não é apenas o critério de necessidades de saúde que determina a alocação de recursos e a distribuição territorial dos serviços de saúde, e que há constrangimentos relacionados à capacidade fiscal, administrativa e de ordem técnica que também dificultam a oferta dos serviços do SUS, numa federação com tamanho grau de desigualdade entre os entes federados, que o digam os municípios de São Paulo e Borá, ambos no estado de São Paulo e, respectivamente, o maior e o menor município brasileiro.
As desigualdades na distribuição de serviços, que não se traduzem em aumento da equidade (tratar desigualmente os desiguais, buscando a redução das desigualdades e da vulnerabilidade), se manifestam no acesso a cuidados à saúde, que consistem em direitos, que nem sempre se concretizam por meio do acesso. De todo modo, muito se avançou e muito ainda se precisa avançar.
Mobilizadores COEP – O que é preciso para ter acesso ao SUS?
R.: Para ter acesso aos serviços assistenciais do SUS, o cidadão deve procurar uma unidade de saúde, sendo necessário um documento de identificação, exceto em casos de emergência.
Mobilizadores COEP – Qual o percentual da população brasileira atendida pelo Sistema?
R.: De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 50% da população brasileira é atendida pelo SUS. Entretanto, se pode dizer que toda a população brasileira e os que aqui passam usam o SUS, pois ele não se restringe à assistência à saúde, ou melhor, aos cuidados à saúde dos indivíduos. A despeito de todas as dificuldades, ele busca avançar na direção dos ambientes saudáveis e da melhoria da qualidade de vida.
A utilização de um termo preconceituoso e inadequado, o de população SUS-dependente e de não usuários do SUS, tem sido um desserviço à cidadania. Quem se acidenta em via pública e é socorrido pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) usa o atendimento público de emergência, tanto pré-hospitalar, quanto hospitalar para atendimento imediato, nas cidades que dispõem de Samu.
Mobilizadores COEP – De acordo com o Sistema de Indicadores de Percepção Social, divulgado pelo Ipea em fevereiro deste ano, como o SUS foi avaliado por aqueles que se reconhecem como seus usuários? E por aqueles que não se vêem como usuários do sistema?
R.: De acordo com o estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os serviços prestados pelo SUS foram melhor avaliados pelos entrevistados que fizeram uso desses serviços. A proporção de opiniões, entre aqueles que se reconhecem como seus usuários, 30,4% consideram os serviços prestados pelo SUS como muito bons ou bons, enquanto entre aqueles que não se consideram usuários, a proporção foi de 19,2%. A proporção dos que consideravam esses serviços como ruins ou muito ruins também foi maior entre aqueles que não se reconhecem como usuários do SUS (34,3%).
Mobilizadores COEP – Até que ponto a população brasileira tem noção da amplitude do sistema?
R.: Boa parte da população brasileira não tem noção da amplitude do SUS, há desconhecimento de que ações, como as realizadas pela Vigilância Sanitária, integram o SUS.
Mobilizadores COEP – Onde os cidadãos podem reclamar em caso de problemas de atendimento no SUS?
R.: Os cidadãos podem recorrer ao serviço de Ouvidoria do local que prestou o atendimento. Caso não disponha desse serviço, o Ministério da Saúde dispõe do “Disque Saúde”, por meio do qual o cidadão pode retirar suas dúvidas, realizar reclamações, sugerir melhorias, e também elogiar os serviços prestados pelo SUS. O telefone é: 0800 61 1997. As Secretarias de Saúde dos estados e dos municípios também costumam dispor de serviços de Ouvidoria.
Problemas técnicos e situações que envolvam riscos à saúde devem ser comunicados à Vigilância Sanitária, para que ela atue. E essa comunicação pode ser feita à Anvisa e aos serviços de Vigilância Sanitária dos estados e municípios, também por meio de seus setores de acolhimento de denúncias.
Mobilizadores COEP – O que é possível fazer para dar mais visibilidade ao SUS?
R.: Melhorar a qualidade de seus serviços, tanto no plano técnico-científico quanto no acolhimento e na humanização. Melhorar a gestão e o uso dos recursos. Com melhor atuação, e melhores resultados, certamente melhora a visibilidade.
Mobilizadores COEP – Quais os principais pontos positivos do sistema? E quanto a suas maiores limitações?
R.: A pesquisa realizada pelo Ipea apontou a universalidade do atendimento como uma característica positiva do SUS, seguida da igualdade no atendimento e pela distribuição gratuita de medicamentos.
Essa mesma pesquisa identificou a falta de médicos como o principal problema do SUS. A demora no atendimento e a demora para conseguir uma consulta com especialista também foram apontadas nesse estudo como pontos negativos.
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* A renúncia fiscal acontece de duas formas: no caso das entidades filantrópicas, pela isenção de impostos. A segunda forma se dá pela dedução no imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas que utilizam serviços de saúde.
Entrevista do Grupo Promoção da Saúde
Concedida à: Renata Olivieri
Editada por: Eliane Araujo