R.: O que tem tradicionalmente visibilidade na grande mídia é um retrato das sociedades indígenas vinculadas, por um lado, à miséria e à violência, e, por outro lado, a representações totalizantes dessas sociedades, reduzindo-as a uma só cultura e discurso, perpetuando estereótipos e reforçando preconceitos na sociedade nacional. No entanto, existe uma imensa diversidade de povos e uma intensa produção cultural e discussão política travada no interior dessas sociedades e entre elas, que se mantém à margem do debate público. O acesso à mídia é uma questão estratégica para as minorias étnicas e uma necessidade para o convívio democrático entre os povos.
Mobilizadores COEP – Qual a proposta do projeto Vídeo nas Aldeias? Há quanto tempo é desenvolvido?
R.: Criado em 1987, o Vídeo nas Aldeias é um projeto precursor na área de produção audiovisual indígena no Brasil. Sua proposta é apoiar as lutas dos povos indígenas para fortalecer suas identidades e seus patrimônios territoriais e culturais, por meio de recursos audiovisuais. Sua trajetória permitiu criar um importante acervo de imagens sobre os povos indígenas no Brasil e produzir uma coleção de cerca de 60 filmes, vários deles premiados internacionalmente, transformando-se em uma referência nacional e internacional nesta área. Em 1998, a ONG Vídeo nas Aldeias criou o programa de formação e produção audiovisual dos povos indígenas da Amazônia. Com o objetivo de conhecer, valorizar, registrar e difundir o patrimônio e diversidade cultural e artística, projetos políticos e práticas de desenvolvimento presentes nas comunidades envolvidas, a iniciativa promove oficinas de formação e treinamento de realizadores indígenas para o uso artístico, criativo e crítico das técnicas e linguagens audiovisuais. Além disso, o programa oferece equipamentos, recursos técnicos e financeiros de apoio à produção e divulgação das realizações desses povos. Por meio de um processo de formação continuada e interativa, a iniciativa conta com a participação de toda a comunidade nas diferentes etapas do processo de aprendizagem e produção, promovendo a troca de saberes e técnicas tradicionais e presentes, a reflexão e a criação coletiva de bens culturais em cada comunidade, respeitando e valorizando suas especificidades, histórias, recursos, desejos e propostas.
Mobilizadores COEP – Qual a importância do projeto para as comunidades indígenas?
R.: Com o projeto, foram criadas condições para que os povos indígenas pudessem expressar, a partir de sua própria voz e olhar, suas realidades e projetos, passando de objetos de observação a sujeitos do discurso. Dessa maneira, estabeleceu-se um espaço privilegiado de reconhecimento e valorização da diversidade de manifestações, modos de vida e bens culturais produzidos pelas sociedades indígenas, promovendo tanto uma revisão de sua própria imagem quanto de sua representação na população não-indígena. O programa promove, ainda, a formação de redes de troca e colaboração entre as sociedades indígenas, instituições de ensino, organizações parceiras, comunidades e grupos culturais não-indígenas, incentivando o intercâmbio cultural e ampliando o debate democrático para a constituição de uma cultura da paz entre os povos. Com a criação dos pontos de cultura (2005), a iniciativa fortalece sua proposta de intercâmbio entre as diversas comunidades indígenas e entre essas e outros movimentos culturais nacionais, tecendo uma rede democrática de articulação e colaboração entre vários atores.
Mobilizadores COEP – Qual o público-alvo do projeto?
R.: São comunidades indígenas interessadas no intercâmbio de experiências com os outros povos indígenas, assim como na revisão de sua imagem e representação na sociedade brasileira e internacional, incorporando o uso do vídeo em seus projetos. Para buscar, e tornar realidade, alternativas de futuro sustentável de acordo com os projetos políticos e particularidades culturais das comunidades indígenas, o Vídeo nas Aldeias se associa aos grupos indígenas organizados, que passam por processos de luta pela demarcação e fiscalização de seus territórios, pela construção de sua autonomia política e econômica, pela valorização de seu patrimônio cultural, que possam formar as próximas gerações dentro de uma perspectiva formulada pelas próprias comunidades indígenas. O projeto trabalha atualmente com os seguintes povos: Xavante, Kinsedje, Ikpeng, Kuikuro e Panará (Mato Grosso); Ashaninka, Huni Kuin e Manchineri (Acre); Piratapuia, Tukano, Baré e Tariano (Rio Negro/AM); Waimiri-Atroari (Amazonas); Makuxi (Roraima); Truká (Pernambuco); e Guarani (Rio Grande do Sul).
R.: As oficinas de formação de cineastas indígenas, desenvolvidas pelo Vídeo nas Aldeias, é um programa de intervenção direta que visa contribuir para o movimento de afirmação étnica e de busca de alternativas de desenvolvimento, tendo o vídeo como seu principal instrumento. O Vídeo nas Aldeias dá suporte técnico e financeiro para viabilizar a emergente produção audiovisual indígena e sua difusão entre os povos indígenas, bem como no circuito midiático nacional e internacional. A formação dos realizadores indígenas constitui o eixo central do projeto. A prioridade é oferecer uma formação de qualidade, pois dela depende a credibilidade e o reconhecimento da produção indígena. Esta reflexão fundamenta a metodologia de capacitação: o treinamento contínuo e aprofundado mediante as oficinas de capacitação. As oficinas são realizadas nas aldeias indígenas, espaços onde os alunos desenvolvem suas pesquisas, escolhem os temas e seus personagens e realizam suas produções. Os alunos são escolhidos pelas comunidades e devem estar realmente trabalhando para as iniciativas do coletivo.
Mobilizadores COEP ? Como são implementadas as oficinas?
R.: As oficinas de campo consistem em cursos de um mês de duração, para 5 a 12 participantes, com dois a três professores. A formação se dá em quatro etapas: roteiro, captação de imagens, análise crítica do material captado e edição. Todo este processo é acompanhado de discussões sobre o conteúdo do material, sua qualidade técnica e também de reflexões sobre seu tratamento. A dinâmica interativa da oficina faz com que a comunidade seja incluída em todas as etapas deste processo. A comunidade deixa de ser um objeto de gravação para contribuir na escolha dos temas, exercer crítica e influir substancialmente no resultado final do trabalho. A partir das oficinas de iniciação realizadas nas aldeias, cada aluno elabora um projeto de realização que será acompanhado e apoiado pelo núcleo de produção do Vídeo nas Aldeias. Na sede da iniciativa, em Olinda, Pernambuco, se realizam a produção, a finalização e a distribuição dos vídeos. Esta sede oferece a infra-estrutura necessária à produção dos vídeos e permite pôr em prática os projetos, do ponto de vista financeiro, técnico e de conteúdo.
Mobilizadores COEP – Que tipo de material audiovisual é produzido pelos índios? Que temáticas são mais abordadas?
R.: Cerca de 25 filmes de autoria indígena já foram produzidos ao longo da trajetória do Vídeo nas Aldeias. Falados em suas línguas originais, todos têm versão em português, e a maioria deles em inglês e em espanhol. Desde a criação do programa de formação de realizadores indígenas, em 1998, o Vídeo nas Aldeias realizou 56 oficinas para 93 alunos pertencentes a 29 povos indígenas da região Amazônica brasileira, equipando as comunidades com câmeras e acessórios de gravação. As temáticas variam entre crônicas cotidianas, lutas, território, história, cultura, rituais, mitos, saúde, meio ambiente e sustentabilidade.
Mobilizadores COEP ? Como o material produzido é divulgado?
R.: A distribuição e divulgação dos filmes produzidos são realizadas da seguinte maneira:
* Entre os povos indígenas: o Vídeo nas Aldeias possibilita o intercâmbio de seus conhecimentos e experiências através da distribuição do acervo de vídeos para as comunidades e associações indígenas no Brasil e no exterior.
* Para o público não-indígena: contribui para que, paulatinamente, este público entre em contato com vários aspectos da realidade indígena contemporânea:
1.Na mídia em geral, especialmente por meio das TVs públicas brasileiras bem como em centros culturais, museus, universidades e festivais nacionais e internacionais.
2. Nas instâncias de poder (local, estadual e nacional), convertendo-se em ferramentas úteis para que os índios denunciem abusos contra seus direitos, divulguem suas experiências e defendam políticas públicas positivas.
3. No sistema educacional, permitindo o acesso das novas gerações a informações sobre a realidade indígena antes inexistentes ou distorcidas.
4. Atualmente, Vídeo nas Aldeias desenvolve a Coleção de DVDs Cineastas Indígenas. A série composta por cinco DVDs, apresenta dez documentários produzidos por realizadores indígenas no contexto das oficinas de formação em audiovisual do Vídeo nas Aldeias, com extras com histórico sobre os povos, making of dos filmes e o uso da câmera nas comunidades. Os DVDs são comercializados na Livraria Cultura, Livraria da Vila (SP) e Livraria 2001 (SP), atingindo um público mais especializado. Uma tiragem de 3 mil cópias para distribuição gratuita está prevista para escolas públicas, escolas indígenas, centros culturais e cineclubes de todo o país. O objetivo é contribuir para o conhecimento e a difusão da diversidade étnica e cultural dos povos indígenas do Brasil através da linguagem audiovisual, possibilitando novos espaços de diálogo entre eles e a sociedade nacional.
5. Distribuição internacional:
A visibilidade ocasionada pela distribuição e as premiações de várias obras em festivais internacionais abriram espaço para a difusão da série em redes públicas e comerciais de televisão no mundo. Assim como dentro do Brasil, no exterior, o Vídeo nas Aldeias distribui seus títulos a várias organizações, universidades, centros de pesquisa, museus e festivais internacionais, em resposta a demandas dirigidas diretamente à sua sede e também através de duas distribuidoras nos Estados Unidos (Documentary Educational Resources, em Massachusetts, e Video Data Bank, em Chicago) e no Canadá (V-tape em Toronto). O site do Vídeo nas Aldeias (www.videonasaldeias.org.br/) também está sendo uma ferramenta eficaz de divulgação e de distribuição.
Mobilizadores COEP ? E como são assegurados os direitos autorais?
R.: O Vídeo nas Aldeias estabelece contratos de direitos autorais e de imagem com os realizadores e suas comunidades, contribuindo para a conscientização das comunidades indígenas no que diz respeito ao uso de sua imagem e de suas obras audiovisuais. A discussão e os esclarecimentos realizados coletivamente nas comunidades em torno destes contratos têm como objetivo: uma maior transparência na relação entre as partes (realizadores, Vídeo nas Aldeias e comunidade), no que diz respeito à produção, distribuição, custos e eventual benefício financeiro proveniente da venda dos vídeos; incentivar as comunidades indígenas a conhecerem e defenderem seus direitos coletivos relacionados à sua imagem e aos seus diferentes usos (comerciais ou sem fins lucrativos); e fazer destes contratos uma referência para o estabelecimento de outros que as comunidades venham a estabelecer com novos parceiros. Os contratos relativos aos vídeos de autoria indígena atribuem: 35% da receita de distribuição ao realizador por direitos autorais, 35% para a comunidade filmada por direitos de imagem e 30% para o Vídeo nas Aldeias para ser revertido na capacitação de realizadores indígenas.
Mobilizadores COEP ? Você comentou que a divulgação da produção é uma ferramenta para que os povos indígenas defendam políticas públicas positivas. Quais os resultados positivos até o momento?
R.: Desde sua criação, em 1998, a iniciativa produziu um acervo de 25 vídeos de autoria indígena, realizados em 58 oficinas de formação com 93 participantes de 29 etnias da região Amazônica, Pernambuco, Rio Grande do Sul e Minas Gerais; criou, em parceria com associações indígenas, videotecas locais de acesso às produções próprias, de outras etnias e grupos culturais; divulgou a realidade indígena por meio de TVs e órgãos públicos e da participação em seminários e festivais, ampliando e aprofundando o debate público; criou DVDs e materiais para uso didático nas escolas indígenas e não-indígenas; estabeleceu contratos de direitos autorais e de uso de imagem com as comunidades e a partilha da receita de distribuição dos vídeos; fortaleceu as redes de intercâmbio entre as comunidades indígenas; promoveu o reconhecimento das identidades locais e a valorização dos diferentes saberes e membros das comunidades; fortaleceu o debate e troca cultural com grupos não-indígenas.
Em 1998, o Vídeo nas Aldeias realizou para o Ministério da Saúde os vídeos da campanha de prevenção à Aids para áreas indígenas. Em 2000, produziu, em parceria com o Ministério da Educação, a série ?Índios no Brasil? para ser veiculada pela TV Escola. O projeto atinge 50 mil escolas não-indígenas, além de ter distribuído 10 mil cópias nas escolas da rede pública. Desde 2000, ela é transmitida anualmente pelas Tvs públicas e tem chegado a milhões de estudantes carentes de informações sobre a realidade indígena do seu próprio país.
Em 2002, o Vídeo nas Aldeias realizou, em parceria com Ministério do Meio Ambiente, o vídeo ?Agenda 31? sobre a formação de agentes agroflorestais indígenas do Acre (CPI/AC) divulgando experiências de manejo e desenvolvimento sustentável entre as comunidades indígenas e tradicionais. Em 2006, o Vídeo nas Aldeias produziu, em parceria com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional / Ministério da Cultura (Iphan/ Minc), o vídeo ?Iauaretê, Cachoeira das Onças? sobre o processo de tombamento da cachoeira de Iauaretê como local sagrado dos povos Indígenas do Rio Negro.
O Vídeo nas Aldeias também tem usado o vídeo como instrumento político de intervenção em várias lutas do movimento indígena, como por exemplo:
*Na luta histórica pela demarcação da área Raposo Serra do Sol, no Estado de Roraima, a ONG produziu dois vídeos que foram instrumentos importantes de campanha.
* Quando os fazendeiros e a própria Funai se negavam a reconhecer a existência dos índios isolados da Gleba Corumbiara, em Rondônia, a produção e divulgação nacional pela TV de imagens dos primeiros contatos com a tribo foram determinantes para a Justiça Federal ordenar a proteção dos índios.
Se você gostou do trabalho desenvolvido pela ONG Vídeo nas Aldeias, leia osartigos disponibilizados na ferramenta Textos do Grupo Comunicação e Mobilização Social, com autorização da ONG. Vale a pena conferir!Entrevista concedida à: Renata OlivieriEdição: Eliane AraujoEsperamos que tenham gostado da entrevista. Lembramos que o espaço abaixo é destinado a comentários. O entrevistado não se compromete a responder as perguntas aqui postadas.