Comunidades quilombolas da região do Vale do Ribeira (nos estados de São Paulo e Paraná), presentes na região há mais de 300 anos, vêm se fortalecendo e obtendo maior espaço para defesa de seus interesses a partir do projeto Vale do Ribeira, implementado pelo Instituto Socioambiental (ISA).
A iniciativa envolve ações nas áreas de educação, cultura e geração de emprego e renda, dentro de uma perspectiva socioambiental, buscando meios alternativos, junto com as comunidades, para a gestão e uso sustentável dos recursos naturais da região, de forma compatível com as condições socioeconômicas, culturais e ambientais locais. As comunidades estão em processo de construção da Agenda 21 local. Confira na entrevista com Nilto Tatto, coordenador do projeto.
Mobilizadores COEP – Onde está situado o Vale do Ribeira? Quantos municípios localizam-se na área? Qual a importância socioeconômica e ambiental da região?
R.: O Vale do Ribeira está situado entre as regiões sudeste do estado de São Paulo e o leste do estado do Paraná, com 31 municípios (9 no PR e 22 em SP). Possui uma área de 28.306 km2. É a maior área contínua de remanescentes da Mata Atlântica, com mais de 22% dos 7% que ainda restam de floresta neste bioma no Brasil. A região ainda concentra mais de 78% do seu território com cobertura florestal e mais de 50% de seu território são protegidos por diversas Unidades de Conservação.
Além da riqueza ambiental, no Vale do Ribeira vivem cerca de 80 comunidades quilombolas. De acordo com dados oficiais do Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp) e também da Equipe de Articulação e Assessoria as Comunidades Negras do Vale do Ribeira (EAACONE), são 59 quilombolas na porção paulista e mais de vinte comunidades na paranaense. Além disso, vivem na região 12 comunidades indígenas e centenas de comunidades caiçaras e de agricultores familiares, compondo uma diversidade social ímpar para a região Sul e Sudeste do país. A população do Vale do Ribeira está próxima de 430 mil habitantes e, apesar de toda a riqueza da sociobiodiversidade, ainda persistem os menores índices de desenvolvimento nos estados do Paraná e São Paulo.
Mobilizadores COEP – Qual a importância da terra para a sobrevivência das comunidades quilombolas? De que forma o conceito de desenvolvimento sustentável se mescla com o saber tradicional, nas práticas de uso e ocupação do solo por estas comunidades?
R.: A titulação da terra de quilombo é fundamental para criar as condições necessárias para a reprodução social, cultural e natural da comunidade. Sem o seu território, a comunidade está fadada ao desaparecimento enquanto comunidade tradicional quilombola. É no território que a comunidade mantém sua relação com o meio ambiente (agricultura e extrativismo) e estabelece as relações sociais.
Tradicionalmente, as comunidades quilombolas do Vale do Ribeira estabeleceram formas de uso e relacionamento com o meio ambiente ? o sistema de rodízio das roças, coleta de ervas medicinais, madeiras para casa e outras pequenas construções, cipós, sementes e madeiras para utensílios/artesanatos ? que ajudaram a conservar boa parte da riqueza ambiental que ainda existe na região. No entanto, estas comunidades necessitam de outros recursos para suprir novas necessidades de bens e serviços, relacionados à educação, saúde, energia, utensílios domésticos, lazer, vestuário etc.
Neste sentido, é necessário desenvolver projetos de geração de trabalho e renda que contemplem as especificidades destas comunidades, aproveitando de forma sustentável os recursos naturais e ao mesmo tempo ajudando a manter viva a sua forma de reprodução social e cultural.
Mobilizadores COEP – Como a sobreposição de territórios quilombolas e Unidades de Conservação vem repercutindo na vida dos quilombolas?
R.: As comunidades quilombolas do Vale do Ribeira estão lá há mais de trezentos anos, como o quilombo de Ivaporunduva, por exemplo, fundado ainda no final do século XVII. Já as Unidades de Conservação (UCs) foram criadas a partir de 1950 e consequentemente algumas foram criadas sobrepostas às comunidades que ali vivem.
A sobreposição de UCs sobre os territórios das comunidades trouxeram uma série de questões para o relacionamento entre estas comunidades e os órgãos públicos ambientais. As comunidades ficaram impedidas de realizar suas roças da forma que faziam tradicionalmente e de extrair determinados recursos da mata, ocasionando problemas de segurança alimentar.
Com o passar do tempo, algumas comunidades recorreram a atividades insustentáveis do ponto de vista social e ambiental, como a extração do palmito, para assim complementar o orçamento familiar e garantir o alimento do dia a dia. A sobreposição também atrapalha o processo de reconhecimento e titulação dos territórios quilombolas que estão dentro dos parques. Só é possível titular o território depois que suas áreas forem desafetadas, ou seja, depois que os limites dos parques saírem de cima dos territórios quilombolas.
Mobilizadores COEP – Quando o projeto do ISA começou a ser implementado? Quais seus objetivos? Quem são os parceiros do ISA na iniciativa?
R.: Desde a sua fundação, em 1994, o ISA vem acompanhando, com especial atenção, os desdobramentos da questão quilombola no Brasil e, principalmente, no Vale do Ribeira, monitorando os trâmites legais para a efetivação dos direitos expressos no Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988, que reconhece aos quilombolas a propriedade definitiva das terras que ocupam, por meio do reconhecimento, regularização e titulação de seus territórios.
Em 1996, o ISA começou a elaboração do Diagnostico Socioambiental Participativo do Vale do Ribeira. A partir deste trabalho, iniciou-se o estreitamento das relações entre o instituto e as comunidades quilombolas da região, principalmente na luta contra a construção das barragens no Rio Ribeira de Iguape.
Há dez anos, o ISA e a Associação Quilombo de Ivaporunduva estabeleceram uma parceria com o objetivo de viabilizar estudos e desenvolver, conjuntamente, meios alternativos para a gestão e uso sustentável dos recursos naturais da comunidade, visando à geração de renda de forma compatível com as condições sociais, econômicas e ambientais locais, a garantia da proteção e conservação da área em que vivem, e melhor qualidade de vida para as famílias da comunidade.
Em 2005, o ISA estabeleceu parcerias com a Equipe de Articulação e Assessoria das Comunidades Negras (Eaacone), Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), Fundação Florestal e vários outros parceiros/financiadores para ampliar sua atuação para outras 15 comunidades, desenvolvendo projetos nas áreas de educação, cultura e de geração de emprego e renda para as comunidades quilombolas da região. Em 2007, o ISA iniciou parceria com o Instituto Ambiental Vidágua para implementar uma campanha para recuperação das matas ciliares do Vale do Ribeira – Cilios do Ribeira – http://www.ciliosdoribeira.org.br/
Mobilizadores COEP – Que tipos de ação estão previstos no projeto? Quais já foram ou estão sendo executados e quais as principais dificuldades encontradas para sua realização?
R.: Na área de educação, o ISA desenvolve o projeto de bolsa de ?iniciação científica? para os universitários quilombolas, garantindo assim as condições para que estes universitários terminem o curso. Esta ação deverá ser interrompida no final de 2009, caso o ISA não consiga parcerias para sua continuidade. O instituto também ajudou na formulação e negociação do projeto de alfabetização de jovens e adultos coordenado pela Eaacone com apoio da Fundação Banco do Brasil e que está em atividades em 15 comunidades.
Na área de cultura, o projeto envolve 16 comunidades no levantamento de seu patrimônio cultural material e imaterial. Já na área de turismo, está sendo feito um levantamento do potencial turístico e a construção de um roteiro turístico quilombola em oito comunidades.
Com o artesanato, o ISA vem apoiando projetos em três comunidades: tanto o artesanato da fibra da bananeira quanto a realização de levantamento do artesanato tradicional quilombola para trabalhar sua revitalização e avaliar com as comunidades o potencial para geração de renda.
Na área de manejo, o ISA vem desenvolvendo um grande programa de repovoamento do palmito juçara para futuro manejo com 12 comunidades. Apoia a agricultura tradicional com o fortalecimento das atividades de roça e resgate das sementes tradicionais (arroz, feijão, milho, inhame, mandioca, entre outras), o que pode ser visto no vídeo postado no youtube –http://www.youtube.com/watch?v=Kgvi1lMpqW8).
Desenvolve ainda projeto de apicultura em três comunidades. Construiu cinco viveiros para produção de mudas de espécies nativas (ingá, ipê, juçara, canela, entre outras, seguindo Resolução 44/2008 SMA-SP) da Mata Atlântica visando à recuperação de áreas degradadas e geração de renda para as comunidades. Apoia a certificação orgânica da banana em duas comunidades e a sua comercialização. Desenvolve projetos de recuperação de áreas degradadas de antigas fazendas que foram incorporadas aos territórios dos quilombos.
A maior dificuldade que enfrentamos é o pouco apoio financeiro e o tempo necessário para levar a cabo os projetos dentro das condições específicas das comunidades.
Mobilizadores COEP – Qual a importância deste tipo de ação para o fortalecimento e o desenvolvimento das comunidades quilombolas?
R.: Como expliquei antes, o ISA desenvolve uma série de projetos nas áreas de educação, cultura e geração de renda. Estas experiências contribuem para que o instituto e seus parceiros locais, neste caso as comunidades quilombolas, acompanhem políticas públicas de interesse das comunidades tradicionais na intersecção com os temas ambientais. Este processo ajuda o fortalecimento e a maior participação das comunidades nos diversos espaços, como fóruns locais, regionais e nacionais de discussão e de formulação de políticas públicas de interesse destas comunidades.
Mobilizadores COEP – O que será e como está sendo construída a Agenda Socioambiental Quilombola do Vale do Ribeira?
R.: A Agenda Socioambiental Quilombola (http://www.socioambiental.org/banco_imagens/pdfs/agenda.pdf ) é um processo de construção da Agenda 21 local em diversas comunidades e que consiste basicamente em discutir de forma participativa os problemas, a gestão territorial, o fortalecimento das comunidades, os caminhos para desenvolvê-las e, ao mesmo tempo, manter conservados os recursos naturais para as futuras gerações.
Todas as ações do processo de construção da Agenda Quilombola são realizadas de forma participativa: levantamento das informações básicas – diagnóstico; oficinas temáticas; mapeamento dos usos atuais; planejamento de usos futuros; sistematização das informações para os potenciais parceiros e órgãos públicos e para divulgação externa.
Mobilizadores COEP – Qual a proposta do Plano de Gestão Integrada das Comunidades Quilombolas (PGAI ? Quilombos)?
R.: Ajudar as comunidades quilombolas a se organizar para garantir em primeiro lugar os seus territórios, e apoiá-las na gestão; e desenvolver projetos de geração de renda, garantindo as condições para manter as comunidades vivas e a proteção dos recursos naturais para as futuras gerações.
Mobilizadores COEP – Quais os principais resultados já obtidos pelo projeto?
R.: Alguns resultados já podem ser verificados como: maior visibilidade das comunidades ? seus problemas, suas potencialidades e seu papel para a conservação ambiental de grandes áreas da Mata Atlântica; desafetação de áreas de quilombos que tinham UCs sobrepostas nos seus territórios; melhor entendimento das comunidades sobre seu papel para a conservação dos recursos naturais; aumento na renda das famílias de algumas comunidades; e maior participação das comunidades nos espaços de discussões de políticas de interesse delas.
Mobilizadores COEP – Como o projeto pretende contribuir para a construção de políticas públicas com interfaces em recursos hídricos, naturais e comunidades tradicionais?
R.: Os projetos são desenvolvidos a partir da perspectiva socioambiental. Consideram a ampla participação das famílias quilombolas em todos os processos, contemplando as questões sociais, ambientais, culturais e econômicas. Procuram valorizar as especificidades de uma comunidade tradicional, considerando o seu tempo e a relação com meio ambiente que tradicionalmente mantiveram.
Mobilizadores COEP – De que forma o COEP, rede de mobilização social com atuação em comunidades de todo o país, pode agir para contribuir para o fortalecimento das comunidades quilombolas?
R.: O maior problema que as comunidades quilombolas enfrentam é a conquista definitiva de seus territórios. Das 59 comunidades existentes na porção paulista do Vale do Ribeira, somente seis conseguiram a titulação. Demorou 100 anos, contado a partir da abolição da escravatura para conseguir o direito constitucional aos seus territórios, expresso na Constituição de 1988. Até agora, poucas dezenas das mais de 3.500 comunidades no Brasil têm seus territórios titulados.
Neste ritmo serão necessários muitos anos para que o Estado e a sociedade brasileira reconheçam e garantam o direito básico e, mais importante, para a reprodução social, cultural e natural destas comunidades. Portanto, elas correm sérios riscos de desaparecer enquanto quilombos, e consequentemente o país perderá boa parte da sua rica diversidade cultural. Os governos passam e os problemas permanecem.
A solução passa também pela capacidade de articulação e mobilização do próprio movimento quilombola e do apoio que eles terão de outros segmentos da sociedade brasileira. Neste sentido, o apoio de redes como o COEP na divulgação da causa quilombola e das experiências vivenciadas pelas comunidades do Vale do Ribeira contribui para avançar na consolidação dos direitos básicos das comunidades quilombolas de todo o país.
Mais informações sobre o ISA: http://www.socioambiental.org/
Sobre a campanha contra a construção de barragens no rio Ribeira: http://www.socioambiental.org/inst/camp/Ribeira/
Sobre a campanha para recuperação da mata ciliar no Vale do Ribeira: http://www.ciliosdoribeira.org.br/Entrevista concedida a: Renata OlivieriEdição: Eliane Araújo