Em 1997, na cidade de Belo Horizonte (MG), um grupo de professores da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) percebeu que de nada adiantava falar de saúde coletiva sem prestar atenção no meio em que as pessoas viviam. Foi a semente do Projeto Manuelzão, que conjuga mobilização social, ativismo ambiental, cuidados com a saúde e fortalecimento da história local. Tendo como meta e eixo principal a revitalização do Rio das Velhas, que banha a capital mineira e deságua no Rio São Francisco, e a volta dos peixes ao curso d’água, o projeto já conseguiu atingir 60% dos seus objetivos. ?Em Lagoa Santa, a cerca de 40 quilômetros da capital, já conseguimos pegar dourados e matrinxãs, que são peixes que demandam maior qualidade de água e de oxigênio dissolvido?, orgulha-se o professor Marcus Vinicius Polignano, um dos coordenadores do Manuelzão. É este processo de mobilização e de resultados práticos que ele conta nesta entrevista.
Mobilizadores COEP – Como e onde começou o projeto Manuelzão? Com que objetivo?
R: O projeto começou em 1997, inicialmente por iniciativa de um grupo de professores da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Era uma crítica à questão e ao modelo de saúde do país, que estava muito mais preocupado com assistência medica do que com a promoção da saúde. Percebemos que estávamos trabalhando de forma incoerente. Íamos para as comunidades falar de saúde pública e coletiva e levávamos simplesmente ações assistencialistas e medicalização. Começamos então a perceber que, para intervir de fato na saúde coletiva, tínhamos que influir nos determinantes do processo saúde-doença, no que realmente gerava as doenças nas comunidades. Percebemos então que a saúde era muito mais fruto da qualidade de ambiente e de vida das pessoas do que propriamente das ações medicamentosas. Vimos que, se queríamos realmente garantir às pessoas o direito à saúde, tínhamos que intervir na questão ambiental.
A partir daí, o projeto começou a trabalhar essa identidade que conjuga saúde, ambiente e cidadania, entendendo que não há como melhorar e preservar a qualidade de saúde, se não melhorar também a qualidade do ambiente onde as pessoas vivem.
Num segundo momento, percebemos que a falta de cuidado com a questão ambiental que comprometia a saúde das pessoas também contaminava e comprometia a saúde dos rios. A falta de tratamento de esgoto, de tratamento e coleta de lixo etc. fazia com que os córregos de Belo Horizonte se tornassem depósito de lixo e de esgotos da população. Verificamos que os cursos d’água dentro da capital estavam totalmente poluídos e degradados pelos esgotos, pelos lixos, pelos produtos industriais etc.
Na sequência, observamos que os rios de Belo Horizonte desaguavam no Rio das Velhas e vimos que este estava absolutamente morto no trecho metropolitano. Ou seja, tal era a poluição que Belo Horizonte e as cidades do entorno jogavam no Rio das Velhas, que ele já não tinha mais peixe. Toda matéria orgânica que era jogada no curso d’água consumia oxigênio, matava o rio e consequentemente impossibilitava a vida dos peixes ali. Percebemos também que, depois do trecho metropolitano, na sequência até o rio São Francisco, o Rio das Velhas estava com qualidade ruim, mas não estava morto como na região da capital.
Mobilizadores COEP – Quais as principais características da bacia do Rio das Velhas e qual(is) era(m) os problemas identificados no local? Quais eram as consequências ambientais, socioeconômicas e de saúde desses problemas?
R: O Rio das Velhas tem aproximadamente 780 quilômetros de extensão. Nasce em Ouro Preto, passa pela região de Belo Horizonte, e vai desaguar no São Francisco (é um afluente importante), em uma localidade chamada Barra do Guaicuí, próxima a Pirapora. Além disso, 51 municípios dependem dele, ou seja, fazem parte da bacia hidrográfica, e o rio tem uma relação de interdependência com todos esses municípios. Na região, há aproximadamente 4,8 milhões de pessoas. Grande parte dos municípios, inclusive da região metropolitana, retiram água do Rio das Velhas para abastecimento de sua população. Isso dá uma dimensão de sua importância. É um rio que, por estar nessa região quase central do estado, tem uma relevância para a economia, já que nessa região está concentrado 40% do PIB [Produto Interno Bruto] de Minas Gerais. E tem a ver com a história, com o desenvolvimento e com a poluição de Minas.
A Bacia nos permite ter esta visão sistêmica, que foi um dos ganhos fundamentais do processo. Ou seja, a fluidez das águas carreia pra dentro do rio tudo de bom e de ruim que fazemos no entorno. Costumamos dizer também que a água é o sangue da terra. Da mesma forma que faço exame de sangue para saber como está a minha saúde, nas águas observamos todos os problemas ambientais e de degradação que há no entorno.
Passamos a usar a água também como elemento sinalizador dos problemas ambientais que provocamos no entorno e o peixe se tornou nosso bioindicador: se a água está em boas condições, o bicho está presente; quando isso não acontece e a gente degrada e compromete a qualidade da água, a vida também se torna ausente, representada aí pelo peixe.
Com a qualidade da água comprometida, ela se torna inadequada para o uso humano e para os animais. Chegou a um ponto que, em determinados trechos do rio, ninguém podia usar essa água, dada sua qualidade e seu comprometimento. Ao não permitir mais a existência da biota*1, da vida aquática, isso inevitavelmente comprometeu a subsistência de populações ribeirinhas, que viviam da pesca ou que utilizavam o rio para pesca ao longo do seu trajeto. E no início, quando começamos o projeto, tínhamos um rio praticamente sem identidade com sua população, que, por sua vez, não tinha comprometimento com a sua vitalidade.
Mobilizadores COEP – O que foi preciso fazer para que os peixes voltassem ao Rio das Velhas? Qual foi a estratégia de mobilização social?
R: Primeiro, consolidamos o movimento dentro da universidade, para conseguir a participação de diferentes disciplinas dentro da UFMG, de diferentes áreas do conhecimento, a fim de caracterizar essa transversalidade da questão ambiental. Não tem como tocar um projeto dessa dimensão sem uma visão de transversalidade. Então, primeiro, procuramos trabalhar essa questão dentro da universidade, para que tivéssemos atores das diferentes áreas do conhecimento (Geografia, Geologia, Biologia, Comunicação, Medicina etc.). Ou seja, fortalecemos a questão internamente.
A partir daí, procuramos trabalhar a mobilização social. É o outro elemento fundamental do projeto. Não era possível a modificação desse cenário, sem que a sociedade fizesse parte do processo de mobilização e de discussão. Aí, levamos o projeto para as ruas, para os rios. Fomos a cada comunidade, procuramos nuclear os projetos por sub-bacias. Onde tinha uma sub-bacia, um córrego, um afluente do Rio das Velhas, nós articulávamos a comunidade e formávamos núcleos com a participação tanto da sociedade civil, quanto do setor privado e do governo, para fazer com que cada afluente fosse mobilizado e tivesse uma ação visando à modificação dos fatores que estavam levando à degradação daquele ponto.
A partir daí, avançamos e consolidamos o movimento, mas com viés político. Fizemos uma expedição pelo rio em 2003, na qual mobilizamos a mídia. Isso chamou a atenção do poder público para a necessidade de uma ação imediata para a revitalização da bacia dos Rio das Velhas. Em seguida, consolidamos o que chamamos de Meta 2010: estabelecemos uma meta de que, se recuperássemos o rio na região metropolitana, seria possível navegar, pescar e nadar no rio até 2010. Então consolidamos esta ideia, fizemos uma parceria com o governo estadual, que encampou a meta como objetivo estruturador do governo. E aí conseguimos avançar principalmente no tratamento dos esgotos na região metropolitana.
Mobilizadores COEP – Já estamos em 2010. Está meta foi atingida?
R: Vamos falar da seguinte forma: para quem não tinha nada, atingimos cerca de 60% dela.
Mobilizadores COEP – Qual foi a estratégia utilizada para que pessoas simples, como pescadores e moradores de comunidades rurais ou de baixa renda, se mobilizem para incorporar a mobilização cidadã e a militância ambiental?
R: Procuramos traduzir todo o conceito amplo do projeto (que tem visão ecossistêmica, abrangente, complexa) em uma coisa mais simples, que todo mundo pudesse entender, tanto o ribeirinho, quanto o pastor, o padre, o empresário, o governo etc.: a volta do peixe. Mobilizamos, portanto, em cima de um imaginário muito simples. Em princípio, todo rio deve ter peixe, deve ter vida. Se não tem, é porque suas águas estão degradadas, poluídas e inadequadas para diversos usos, inclusive humano. As pessoas tinham um senso comum bem tranquilo em relação a isso. De uma forma geral, todo mundo entende essa relação da vida com a água ? ou do peixe com o rio. O desafio que a gente criou foi que o projeto tinha como objetivo a volta do peixe. Construímos esse imaginário, conseguimos sensibilizar tanto o pescador que já tinha esse sentimento por já ter uma convivência com o rio, quanto aquela pessoa que, mesmo distante, também entendia que o rio deveria ter peixe e que, para isso, seria necessária toda uma ação de revitalização.
Mobilizadores COEP – Houve escolas envolvidas nas ações de mobilização social? Se sim, quais foram suas atividades e contribuições?
R: O projeto foi se estruturando em várias linhas estratégicas. Na organização da mobilização social fomos pontuando alguns públicos-alvos. Percebemos que as escolas, pela possibilidade de trabalhar com os alunos essa visão de mundo relativa à questão ambiental, eram locais privilegiados para a nossa ação. Criamos em 2001 um subprojeto, que é o ?Manuelzão vai à escola?, no qual temos uma parceria com a Secretaria Estadual de Educação, existente até hoje. Neste projeto, procuramos estimular as escolas a terem um processo de gestão ambiental participativa, e elas procuram trabalhar essa visão ambiental e das águas dentro dos espaços das escolas. Com isso, buscamos tornar as crianças e as comunidades escolares participantes do processo de revitalização. Nós do Manuelzão não queremos simplesmente obra de saneamento e tratamento de esgoto. Queremos mudar a mentalidade das pessoas. Se não fizermos isso, de nada adiantarão as obras. O que temos que mudar é nossa visão de mundo, nossa relação com o meio ambiente, nossa relação com os rios, com as cidades etc.
Estimulamos as escolas a trabalharem com projetos, pois não entendemos que a educação ambiental deve ser uma disciplina à parte. Temos muitas experiências exitosas de escolas que adotaram nascentes ou cursos d’água, criaram programas de horta ambiental no seu espaço, fizeram adoções de áreas verdes e, com isso, cuidam e fazem vigilância etc. Temos muitas ações em cima de projetos que são frutos dessa visão de mundo, de comprometimento com o projeto e com a Meta 2010.
Mobilizadores COEP – Quais os principais conceitos e a metodologia de educação ambiental proposta pelo Projeto Manuelzão?
R: Primeiro, a questão ambiental tem que ser transversal. Não é uma disciplina, não é o conteúdo de uma área específica, mas deve ser uma forma de ver a nossa relação com a natureza. Todos nós temos que rever este conceito de que a natureza não foi feita para ser dominada, mas sim para termos uma relação de interdependência com ela e, portanto, muito mais de respeito à natureza do que de dominação. Trabalhamos muito também este conceito de que temos que aprender mais respeitando do que tentando dominar.
Trabalhamos também a ideia de que a educação se faz com participação social. Não se trata da simples imposição de conteúdos, mas sim da discussão de conceitos. Cultivamos muito essa ideia de que é preciso trabalhar mais a educação de uma forma participativa e cooperativa com a sociedade, e não impositiva.
Uma outra coisa fundamental é que não existe educação ambiental sem construção de cidadania. Nosso trabalho é para estimular nos cidadãos a capacidade de entender essa relação, eles têm que perceber a produção da sua saúde, do seu ambiente, como um direito e como uma necessidade que tem que ser pleiteada junto ao estado, ao municípios, às políticas públicas, para que se garanta a cidadania plena, tanto na questão ambiental, quanto na questão social.
Se você permite às pessoas viverem em condições subumanas, isso tanto desqualifica a pessoa, quanto contamina o ambiente. Não há cidadania unilateral, ela tem que ser plena, no conjunto das relações que os indivíduos têm, e isso inclui não só a questão ambiental, mas também social. Temos que trabalhar para ter ambientes saudáveis e pessoas saudáveis nesses ambientes. Isso é uma construção de cidadania.
Mobilizadores COEP – No que consiste o treinamento em Biomonitoramento? Quem participa e como ele é feito?
R: São professores e alunos da biologia que fazem coleta de bentos [organismos que vivem no fundo do rio, afixados na areia, em rochas ou em galhos] e peixes, quatro vezes por ano, ao longo da bacia. Ao monitorar a qualidade da vida que existe no rio, monitoramos a qualidade das águas. Isso é feito desde 2001, aproximadamente.
Mobilizadores COEP – De que forma o projeto foi se desenvolvendo para englobar novas áreas de atuação?
R: Foi um processo gradual. Fomos percebendo que, mais que obras físicas para revitalizar o rio, precisávamos de uma mudança de mentalidade. Era preciso que, tanto a sociedade civil, quanto os empresários, quanto o governo incorporassem uma outra postura em relação à questão ambiental. Entendemos que a revitalização do rio significava também uma revitalização do pensamento humano, da revisão dessa relação Homem ? Natureza. E isso, portanto, tem a ver com a cultura. Evidentemente, em uma sociedade como a nossa, com um modelo extremamente consumista, que exaure todos os recursos naturais com esse consumismo, não é possível pensar que vamos ter solução para a questão ambiental. Se não revermos nosso modelo e nossa cultura, principalmente a urbana, não vamos ter rios revitalizados e, muito menos, conseguir salvar o planeta.
Mobilizadores COEP – Quando a dimensão cultural foi incorporada ao projeto? Por quê?
R: Fomos envolvendo gradativamente o setor cultural, procuramos articular a participação de grupos artísticos e filosóficos para fazermos discussões com a sociedade, debatermos esses valores e mostrarmos os dilemas que temos hoje e que a única forma de superá-los é mudar nossa visão de mundo: nossa cultura, nossa forma de nos apropriarmos da natureza, nossa forma de viver, que degrada tanto o meio ambiente, quanto nossas relações humanas. Então convidávamos grupos culturais para apresentações e aproveitávamos essas ocasiões para fazer debates. Nós não fizemos simplesmente um aproveitamento dos grupos culturais. Não foi simplesmente uma incorporação. Procuramos fazer com que realmente houvesse a possibilidade do debate cultural. Não foi no sentido de simplesmente fazer manifestação pública. É no sentido de que nossa ação cultural tenha esse vigor de debater questões que são realmente importantes para a sociedade tomar pé da questão. Procuramos mostrar inclusive como a história do rio tem a ver com a história do povo e como é importante para consolidar um sentimento de pertencimento e como isso leva ao fortalecimento dos nossos verdadeiros valores, para que possamos continuar lutando pela revitalização do rio. A cultura enraíza, internaliza esses valores e os consolida, mostrando que temos uma história e que tem a ver com a nossa existência.
Mobilizadores COEP – Quais os resultados positivos já obtidos pelo projeto?
R: Quando instalamos o projeto, não havia mais peixe. Eles vinham, na piracema [período quando os peixes sobem até as cabeceiras dos rios, nadando contra a correnteza, para realizar a desova e a reprodução], subindo o rio do São Francisco para o Velhas e o que ocorria era que ou eles não chegavam ou, quando chegavam, morriam. Periodicamente, havia mortandade de peixe. Sobre os resultados: com as estações de tratamento de esgoto em Belo Horizonte, o resultado é que estamos tendo mais oxigênio na água. Já conseguimos pegar peixes na região próxima de Belo Horizonte, em Lagoa Santa, a cerca de 40 quilômetros da capital. Pegamos dourados e matrinxãs, que são peixes que demandam maior qualidade de água e de oxigênio dissolvido. Isso já mostra a qualidade das águas que temos tido aqui. Não conseguimos tudo que queríamos. O nadar é uma dificuldade: para isso, teríamos que ter um rio quase que absolutamente isento de coliformes fecais, o que ainda não acontece. Mas a presença de peixe é um indicador de que estamos conseguindo revitalizar o rio.
Mobilizadores COEP – Quais os planos para o futuro?
R: Continuar nesse processo de luta. Trabalhar pela revitalização da bacia não só do Velhas, mas das outras bacias no país. A partir do que vimos no nosso trabalho, percebemos que a questão da degradação das bacias é muito semelhante. A revitalização do Velhas pode ser um sinal para todos os demais de que é possível reverter esses processo de degradação e de que podemos escrever uma nova página nessa história rumo a um projeto mais sustentável de vida para a humanidade.
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*1 Biota – é o conjunto de seres vivos, flora e fauna, que habitam ou habitavam um determinado ambiente geológico, como, por exemplo, biota marinha e biota terrestre. As variações climatológicas e ambientais em geral, como salinização de uma laguna, quantidade de sedimentos em suspensão, alteram a biota pela adaptação, mutação e extinção de espécies, ou pela entrada de novas espécies e gêneros.
Entrevista concedida a: Maria Eduarda Mattar
Edição de: Eliane Araujo
Apesar de termos bastante água grande parte dela precisa de tratamento!