Nessa entrevista com Caetano Scannavino, coordenador do projeto social Saúde e Alegria, que atua desde 1987 em comunidades extrativistas da Amazônia, é possível compreender de que forma projetos sociais podem implementar programas de desenvolvimento realmente sustentáveis. Caetano fala sobre o surgimento do projeto, dos programas que envolve e do impacto nas políticas públicas para a região. A experiência, que conta com apoio do BNDES, serve como exemplo de replicação para outras iniciativas sociais que almejem colocar nas mãos das comunidades o leme de seu próprio desenvolvimento.Mobilizadores COEP ? O que você entende por desenvolvimento sustentável? Que aspectos deve contemplar?R.: Para mim, quando falamos em desenvolvimento, tem de estar subentendido a questão do sustentável, pois não adianta iniciar um projeto, desenvolvê-lo por dois anos, por exemplo, e afundar lá na frente. O conceito de desenvolvimento sustentável envolve o tripé ser economicamente viável, ecologicamente correto e socialmente justo. Eu acrescentaria mais um: ser culturalmente adequado, pois não adianta trabalhar o desenvolvimento na Amazônia, por exemplo, com a cabeça do sul do país, é preciso se adequar à realidade local, ao universo cultural do público da região, mesmo porque o entendimento das atividades de desenvolvimento a serem aplicadas tem que partir do domínio da população local para que ela possa gerir seu próprio desenvolvimento. Muitas vezes, vemos na Amazônia projetos de desenvolvimento de cima para baixo, que chegam à região com a cabeça de fora, e que geram ações que ao longo do tempo não vão se sustentar. O desenvolvimento sustentável é um grande desafio.Mobilizadores COEP ? Como começou o projeto Saúde e Alegria?R.: O projeto começou em 1987 a partir de um trabalho anterior do meu irmão, o médio Eugênio Scannavino. Ele foi contratado como médico da prefeitura de Santarém em 1983/84 para trabalhar no interior do município, nas comunidades rurais. Começou a perceber, então, que os grandes problemas da região, especialmente ocorrências básicas de saúde, estavam ligados à falta de higiene, e que um trabalho de educação em saúde, preventivo, seria tão importante quanto o de atendimento médico. Assim, começou a desenvolver gincanas, brincadeiras ligadas ao tema saúde para estimular, por exemplo, o tratamento da água de consumo e para administrar o soro caseiro, pois a grande incidência de mortalidade infantil se devia ao consumo direto da água do rio etc. Depois ele se desligou da prefeitura, mas quis dar continuidade ao trabalho iniciado e de uma forma mais ampla que não se limitasse à saúde. Então, em 1985, eu fui para lá e nós fundamos a ONG Saúde e Alegria, cuja razão social é Centro de Estudos Avançados de Promoção Social e Ambiental. A partir do financiamento do BNDES, em 1987, foi possível efetivar o trabalho. Foi constituído um escritório em Santarém, contratada uma equipe mínima, e o trabalho começou. Mobilizadores COEP – Por que o nome Saúde e Alegria? R.: O nome Saúde e Alegria vem da própria metodologia lúdica utilizada pela rede mocoronga.e pelo circo mocorongo, que repassam os conteúdos às comunidades, por meio de esquetes de teatro, música, poesias. Ensinar com alegria e brincadeiras facilita a aprendizagem da população, que ainda hoje tem dificuldades com a leitura e a escrita, imagina quando o projeto começou. Então, um teatrinho com a receita do soro caseiro, por exemplo, facilita a fixação da importância do soro. Costumamos falar saúde e alegria do corpo, alegria e saúde da alma.Mobilizadores COEP – Qual a área de atuação do projeto? R.: Começamos a trabalhar com 16 comunidades, mas conforme fomos criando tecnologia social, associando conhecimento técnico ao saber popular e gerando soluções para as necessidades mais prementes das populações, ampliamos nossa área de atuação. Hoje, estamos presentes em mais de 150 comunidades, atendendo cerca de 5 mil famílias da zona rural dos municípios de Santarém, Belterra e Aveiro – oeste do estado do Pará. E já replicamos muitos dos aprendizados construídos junto com as comunidades iniciais na primeira etapa do projeto, no final dos anos 80, início dos anos 90.Mobilizadores COEP – Quais as principais dificuldades encontradas para mobilizar as comunidades?R.: No início do projeto, as comunidades ficavam desconfiadas das nossas intenções, não nos conheciam. Mas nossa maneira de atuar, de dialogar e colocar a comunidade como protagonista do processo fez com que ganhassem confiança em nós. A própria comunidade levanta necessidades, as prioriza, identifica soluções, e nós nos preparamos tecnicamente para oferecer soluções aos problemas mais prementes. A partir do momento em que se pode atender aos anseios das comunidades, cria-se confiabilidade e assim é possível alavancar o trabalho em todos os níveis.Mobilizadores COEP ? Além da saúde, quais os outros focos do projeto?R.: Começamos o trabalho a partir de um diagnóstico participativo, em que a saúde se apresentou como uma das principais necessidades levantadas pelas próprias comunidades. A partir da saúde, começamos a desenvolver ações em outras áreas. Hoje, nosso projeto, nosso modelo de desenvolvimento, se baseia em três grandes programas técnicos. Na área de saúde, o programa ?Saúde Comunitária? tem como objetivo melhorar a saúde das comunidades por meio de atividades de atenção primária, de forma integrada à rede pública. O programa capacita multiplicadores, promove campanhas educativas e visitas domiciliares, combate endemias e zoonoses, oferece pré-natal, assistência à gestante e informações sobre planejamento familiar, assistência odontológica, dentre outras coisas.O ?Educação, Cultura e Comunicação? visa ampliar os níveis de conhecimento da população, despertando o aprendizado, a cidadania e a consciência ambiental para o desenvolvimento, atuando para resgatar a cultura e a identidade locais. Cerca de 47,5% da população ribeirinha são menores de 15 anos, e apenas 7,5% têm acesso ao ensino médio completo. Enquanto em outras regiões do país, se debate a qualidade do ensino, ainda estamos lutando pela sua universalização. No eixo da comunicação, a Rede Mocoronga capacita jovens em educomunicação para produção e veiculação de jornais impressos, programas de rádio e de vídeo, constituindo um intercâmbio permanente de informações, conhecimentos e manifestações da cultura local. A nossa grande marca registrada é o circo mocorongo. Para quem não sabe, mocorongo é aquele que nasce em Santarém. Muitas vezes, o termo é usado de forma pejorativa ? para falar que uma pessoa é preguiçosa, lesada, indolente ? por quem não é de Santarém. Como o Saúde e Alegria trabalha com o resgate da cultura tradicional, quisemos difundir o termo que vem do tupi antes de os portugueses chegarem e procurar mudar a forma de o resto do país encará-lo, entendê-lo. Há também um esforço muito grande de inclusão digital, com a implantação de telecentros, movidos a energia solar, geridos pelas próprias comunidades.Na área de geração de renda, temos o ?Economia da Floresta?. O programa pretende consolidar alternativas econômicas que permitam a melhoria da realidade socioeconômica da população ribeirinha com atividades produtivas e de conservação dos recursos naturais, criando modelos adequados de desenvolvimento sustentável para as comunidades.Acima desses três programas, há ainda um grande programa que é o de ?Organização e Gestão Comunitária?, que permeia tudo, pois a idéia é que as próprias comunidades possam ir assumindo, desenvolvendo e gerindo gradualmente todas as atividades iniciadas. Daí vermos o Saúde e Alegria como um projeto de desenvolvimento sustentável e integrado. Consideramos de fundamental importância a comunidade dar continuidade ao que foi iniciado. Se o Saúde e Alegria acabar, o trabalho que o projeto começou vai ter continuidade.Mobilizadores COEP – Como o projeto capacita as comunidades para que possam se autogerir?R.: Instituímos o setor de organização e gestão comunitária para facilitar a assimilação dos mecanismos de gestão pelas comunidades de uma forma gradual. A idéia é que elas mesmas possam participar, por exemplo, da captação de recursos com a nossa orientação. Entendemos que o Saúde e Alegria deve ser um catalisador, mas a própria população deve assumir o modelo de desenvolvimento que fomos construindo juntamente com ela. Isso é sustentabilidade. Além disso, os projetos sociais que trabalham sustentabilidade têm que ter um plano para integrar as políticas públicas a médio e longo prazo, mas garantindo a participação comunitária para que haja controle social, para que não se entregue todo um modelo de desenvolvimento a um governante e aconteça um retrocesso, se use o modelo para fins eleitorais, por exemplo. Mobilizadores COEP – Como preservar o conhecimento tradicional das populações ribeirinhas ?R.: A impressão que a gente tem é que o mundo não entende a Amazônia. Essa região tem uma população grande, que é detentora uma cultura riquíssima e um conhecimento profundo do manejo dos recursos naturais, até porque dependem deles para sobreviver. Eles saem de manhã para pescar o almoço e, à tarde, para caçar o jantar. Ao mesmo tempo, há um processo grande de perda dessa cultura tradicional em função do que vem chegando até a eles com a globalização, essa cultura envolvente, do sul, que eles passam a considerar como a certa. Então, conhecimentos fundamentais para a sobrevivência dessas comunidades, tais como fazer um remédio caseiro, extrair o óleo da copaíba etc vão se perdendo. O jovem não tem mais interesse em ouvir o mais idoso. Daí ser fundamental instrumentalizar a população da região para que entenda o papel da Amazônia no mundo e o seu papel na defesa da Amazônia e a importância disso em relação ao planeta como um todo. A Rede Mocoronga atua justamente contra isso. Os jovens que renegavam a cultura local, passam a ser, como educomunicadores, os difusores dessa cultura. Com a implantação dos pontos de acesso à Internet ? hoje são seis ?, ficamos preocupados em estarmos dando mais um passo para acabar com a cultura local. Mas a iniciativa teve o efeito contrário, eles viram um mundo tão diferente do deles, que ficou mais fácil identificar sua própria identidade e cultura. E agora eles querem, por meio de seus próprios sites, mostrar ao mundo quem são. É a voz do caboclo da Amazônia sendo emanada pelo próprio caboclo.Mobilizadores COEP ? De que forma incrementar a renda da população local? R.: Eles vivem de agricultura itinerante, corte e queima. Então, estimulamos as comunidades a trabalharem com novas técnicas agroecológicas dentro de seus roçados para lhes permitir manter o que já produzem, que é basicamente mandioca, e consorciar essa cultura com a de outras espécies frutíferas e florestais. Isso permite diversificar a produção e ampliar a oferta de alimentos. Além disso, eles passam a ter um sistema agroecológico que vai lhes permitir aproveitar a mesma terra a médio prazo, evitando novas queimadas. Assim vários aspectos são trabalhados a partir de uma mesma iniciativa: renda, segurança alimentar e segurança ambiental, além da questão fundiária, muito séria na região. Temos também programas de arte-utilitária, produção de artesanato. Um bom exemplo é o Mulher Cabocla “TucumArte? em que um grupo de artesãs de Urucuréa confeccionam, a partir do manejo florestal da palha do tucumã, cestarias e as comercializam para dentro e fora da Amazônia. Há uma linha de compradores no eixo São Paulo-Rio. A procura é grande, tanto que este ano estamos ampliando a experiência para um grupo maior. As artesãs têm uma associação e destinam 10% dos lucros a um fundo comunitário de apoio à saúde reprodutiva e combate à desnutrição. Então se criam mecanismos em que a própria comunidade vai gerando desenvolvimento de forma sustentável. Temos também algumas ações na área de energia renovável, com eletrificação rural, seja via energia solar ou, onde existem cachoeiras, pequenas microcentrais hidoelétricas sem impacto ambiental. Numa delas, tendo energia, estamos implantando uma movelaria, um projeto de manejo comunitário da madeira, mas da madeira caída (do resíduo da madeira), para a comunidade produzir móveis rústicos e produtos artesanais. Mobilizadores COEP – E quanto ao programa de ecoturismo de base comunitária? R.: É uma ação que está impactando de forma positiva a renda das comunidades. Temos parceria com projetos de ecoturismo de São Paulo, de Brasília. Um deles é o projeto Bagagem. As comunidades recebem os grupos, de 10 a 12 pessoas, que viajam por estas comunidades, tendo uma visão mais realística do que é a Amazônia e conhecendo um pouco do nosso trabalho. O receptivo todo é feito pelas comunidades. As comunidades recebem uma diária para recepcionar os turistas e também vendem seu artesanato. A idéia é ampliar essa experiência, implantando pousadas comunitárias. Por exemplo, a associação comunitária ter uma pousada para receber os turistas. Nada de luxo, de difícil gestão, mas para oferecer um mínimo de conforto aos turistas.Mobilizadores COEP – Como o projeto vem influenciando na construção de políticas públicas para a região?R.: Bom, essa é justamente nossa missão institucional, estar promovendo projetos de desenvolvimento sustentável integrado, geridos pela própria população e com capacidade de aprimorar políticas públicas e replicação. O nosso objetivo é conseguir gerar atividades que gerem grande impacto nos indicadores sociais, com o menor custo possível, porque aí se otimiza aquela tecnologia, criando capacidade de replicação muito maior. Quanto mais otimizada uma tecnologia, mais sustentável ela é. Precisamos nos adequar ao orçamento público do Brasil. Então, vamos desenvolvendo ações que trazem benefícios diretos para aquela população e ao mesmo tempo, sistematizamos estas ações e geramos modelos para oferecer, tendo o governo como principal cliente. Na área de saúde, por exemplo, estamos implementando com as três prefeituras envolvidas ? de Santarém, Belterra e Aveiro ?, o barco-hospital, o abaré. Estamos experimentando e colocando em prática o primeiro PSF (Programa Saúde da Família) itinerante móvel do Brasil. A legislação brasileira não é adequada às comunidades rurais isoladas da Amazônia. É preciso ajustar a legislação à realidade da região. Colocar um posto de saúde numa comunidade é diferente de colocar um posto num bairro. Há comunidades que ficam distantes 3 horas de caminhada da comunidade mais próxima, o acesso da população fica muito difícil.Mobilizadores COEP – Como é este modelo de saúde desenvolvido em parceria com as prefeituras?R.: É um modelo de saúde ativo. Ele vai até o doente para oferecer o serviço de atenção primária. O abaré é uma unidade móvel de saúde, de atenção básica, de baixa complexidade que atende a ocorrências primárias. O abaré funciona desde agosto de 2006 e atende mais ou menos 2.500 famílias das duas margens do rio Tapajós. Oferece atendimento ambulatorial, odontológico, exames, farmácia. O abaré retorna de 30 a 40 dias a cada comunidade, fazendo o acompanhamento dos pacientes. Esta experiência está tendo ótimos resultados. Está levando o acesso aos serviços básicos de saúde, preconizados pelo SUS, a estas comunidades, dentro de uma logística adaptada à realidade ribeirinha da Amazônia. Então é muito mais fácil levar alguém do Governo, o Ministério da Saúde, para ver na prática esta experiência, do que mostrar no papel um projeto. O Ministério da Saúde está interessado, então podemos criar uma primeira experiência de PSF móvel, pois a nossa idéia não é sair pela Amazônia fazendo outros barcos. A idéia é consolidar a iniciativa para que o governo possa replicá-la em outras comunidades ribeirinhas da região. Os executores daqui para frente seriam os governos. Acredito que o abaré esteja forçando uma reflexão sobre a necessidade de adequar as políticas de saúde para a região amazônica.
Entrevista concedida à: Renata OlivieriEdição: Eliane Araujo
Esperamos que tenham gostado da entrevista. Lembramos que o espaço abaixo é destinado a comentários. O entrevistado não se compromete a responder as perguntas aqui postadas.
A seguir, pequeno depoimento da jovem Raquel, participante do projeto Saúde e Alegria:Tenho poucas lembranças de como era a minha vida antes da chegada do Projeto Saúde e Alegria em minha comunidade, Muratuba, pois era criança. Eu tinha o meu tempo para estudar, brincar, ajudar nas tarefas de casa e gostava muito de participar das atividades programadas pela escola e também pelas professoras de catecismo.
Muratuba sempre lutou pela melhoria de vida de seus comunitários, como, por exemplo, com a Organização Sindical, que há anos motivou a criação dos grupos de jovens e mulheres por meio de educação sindical. Apesar dos avanços, a comunidade enfrentava problemas, principalmente no campo educacional, por causa da falta de espaço físico adequado, ensino fundamental incompleto e metodologia tradicional baseada no comodismo do aluno. Na Saúde, tanto a assistência médica quanto a preventiva eram críticas.
Passei a participar do projeto com a minha integração ao grupo de jovens JOBESP (Jovens em Busca da Esperança), aos 12 anos de idade. Em 2004, fui eleita coordenadora do grupo e locutora da rádio comunitária Raio de Sol, o que contribuiu ainda mais para o meu envolvimento.
A vida em Muratuba mudou de forma significativa, especificamente na organização comunitária e juvenil, com o Saúde e Alegria. O projeto fortaleceu as experiências dos comunitários e as parcerias, possibilitando novas conquistas.
O Saúde e Alegria é um parceiro que visa o desenvolvimento comunitário, de forma harmoniosa e descontraída, porém com responsabilidade. É exemplo de trabalho em parceria, compromisso, em especial com o protagonismo juvenil, e tem contribuído fundamentalmente para o meu crescimento pessoal e profissional.
Raquel Fernandes dos Anjos