As crianças podem ser facilmente capturadas pela cultura do consumo, pois são naturalmente ingênuas e crédulas, e, portanto, creem facilmente nas mensagens publicitárias, sobretudo naquelas dirigidas especialmente a elas. Quanto se trata de publicidade de alimentos, o risco é maior, pois há um estímulo ao consumo de itens pobres em nutrientes que só contribuem para o ganho de peso e o surgimento, cada vez mais cedo, de uma série de doenças. Isso sem mencionar o estímulo ao consumismo e ao materialismo.
Em 34 anos, o excesso de peso infantil aumentou consideravelmente, passando de 10,9%, em 1974-75, para 15%, em 1989, e chegando a um terço das crianças no biênio 2008-2009. Diante deste cenário, tem-se buscado um maior controle sobre a publicidade de alimentos dirigida ao público infantil.
Apesar dos dispositivos constitucionais e legais que protegem a criança no Brasil, não há uma legislação com regras claras e específicas para a publicidade que impacta o público de até 12 anos. As agências e anunciantes atuam apenas com base em um acordo de autorregulamentação, que não prioriza os interesses do cidadão e não protege a infância.
Nesta entrevista, Ekaterine Karageorgiadis, advogada da área de Defesa do Instituto Alana e conselheira do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), fala sobre os problemas causados pelo assédio publicitário ao público infantil e sobre a importância de uma atuação forte do poder público, “que tem o papel prioritário de proteger os interesses da sociedade, e não os interesses comerciais das empresas, tanto no tocante à defesa da infância, como da saúde pública”.
Rede Mobilizadores – É possível estimar quantas crianças, hoje, no Brasil, estão com sobrepeso ou obesas? Em vista dos números, trata-se de uma questão de saúde pública no país? Por quê?
R.: Segundo dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares, realizada, em 2008, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Ministério da Saúde, o excesso de peso atingia 33,5% das crianças de 5 a 9 anos, sendo que 15% delas estavam obesas. A pesquisa revelou ainda que, em 34 anos, o excesso de peso infantil aumentou consideravelmente: passou de 10,9%, em 1974-75, para 15%, em 1989, chegando a um terço das crianças no biênio 2008-2009.
Sem dúvida, trata-se de uma questão de saúde pública, pois o excesso de peso e a obesidade passam a afetar pessoas a partir de 5 anos de idade, em todas as faixas de renda e regiões do país, o que revela a transição nutricional por que passa a população. O problema, hoje, deixa de ser exclusivamente a desnutrição associada a baixo peso, e passa a ser o excesso de peso decorrente da má nutrição, que traz como consequência uma série de doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes, hipertensão, alguns tipos de câncer, em indivíduos cada vez mais jovens.
Segundo consta do Plano de Enfrentamento de Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT), plano plurianual válido de 2011 a 2022, as DCNT são um problema de saúde de grande magnitude, e correspondem a 72% de causa de mortes, tendo havido um acréscimo das taxas de mortalidade por diabetes e câncer na última década. Dentre os fatores de risco apontados estão o consumo de alimentos, com alto teor de gordura, e de refrigerantes, em cinco ou mais dias por semana.
Certamente, as enfermidades apontadas prejudicam não só a vida das pessoas e de suas famílias, como geram gastos expressivos ao sistema de saúde pública do país. Pesquisa recente revela que 488 milhões de reais são gastos, anualmente, apenas para tratar as doenças associadas ao excesso de peso, o que poderia ser evitado.
Rede Mobilizadores – Quais os principais determinantes para o aumento do sobrepeso e obesidade infantis no país?
R.: A mudança na cultura alimentar da população é o principal fator, e envolve o aumento do consumo de produtos alimentícios industrializados e ultraprocessados, com altos teores de sódio, gorduras, açúcares, e bebidas de baixo valor nutricional, associado ao excesso de estratégias de comunicação mercadológica que são utilizadas para convencer as pessoas, sobretudo crianças, a consumi-los.
A população passa a substituir alimentos frescos e típicos de sua dieta tradicional, como arroz, feijão, carnes e vegetais, por alimentos prontos para o consumo, embalados, saborosos e palatáveis. Essas mudanças ocorrem em grande parte pela alteração da dinâmica social, em que as famílias dedicam menos tempo ao preparo dos alimentos, e têm maior necessidade de se alimentar fora de casa, ou em trânsito, principalmente nos grandes centros urbanos, mas não só neles. A oferta, por meio de publicidade, embalagens e rotulagem são importantes fatores de influência do consumo desses alimentos e atingem fortemente as crianças.
Rede Mobilizadores – E quanto ao impacto desta publicidade sobre o imaginário infantil?
R.: Os hábitos alimentares se formam na infância, e nesse novo ambiente obesogênico*1 – descrito anteriormente, de grande oferta de produtos alimentícios considerados não saudáveis e consumidos em excesso -, as crianças são importante alvo da indústria de alimentos e de sua publicidade.
Naturalmente ingênuas e crédulas, em razão do momento de desenvolvimento biopsicológico em que se encontram, as crianças acreditam facilmente nas mensagens publicitárias, sobretudo naquelas dirigidas especialmente a elas.
Nesse ponto, é preciso ampliar o conceito de publicidade para contemplar todas as estratégias de comunicação mercadológica que tenham elementos atrativos para crianças, como anúncios de rádio e TV, jogos de internet, banners, outdoors, promoções, presença em espaços públicos ou colocação de produtos em pontos de venda que contenham personagens, jingles, celebridades, cores, formas atraentes, cenários lúdicos, presença de crianças, etc. Todos esses são elementos do imaginário infantil, que convencem facilmente as crianças a desejarem os produtos, a pedirem que seus pais os comprem. A consequência sobre os valores das crianças é muito grande, sobretudo pelo estímulo ao consumismo, materialismo, estresse familiar, violência, além do excesso de peso.
Justamente pela facilidade de convencimento das crianças, que passam a atuar como promotoras de vendas das marcas, é que os anúncios de guloseimas, fast food, biscoitos, macarrões instantâneos, salgadinhos, refrigerantes, bebidas adoçadas, dentre outros produtos, estão em todos os espaços de convivência da criança e a ela diretamente se dirigem. É difícil mensurar sua quantidade, porque é dispersa, realizada por diversas empresas, para um número muito grande de produtos.
Como exemplos, posso citar que, não raro, há personagens que introduzem produtos e marcas nas escolas, desenhos do universo infantil estampados em embalagens de produtos, oferta de brinquedos em alimentos como cereais matinais e lanches de fast food, jogos de internet que envolvem biscoitos e refrescos, ações de merchandising em programas infantis de televisão, além dos tradicionais anúncios de televisão e rádio.
Rede Mobilizadores – Como funciona a regulação do tema no Brasil? E como é a fiscalização? Há algo que deva ser feito para aprimorá-la? O quê?
R.: A publicidade dirigida à criança já é proibida no Brasil se considerarmos a interpretação conjunta e sistemática da Constituição Federal (art. 227), Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.69/90) e Código de Defesa do Consumidor (CDC – Lei nº 8.78/90, arts. 36, 37§2º, 39, IV). A criança é uma pessoa que merece proteção prioritária e absoluta de seus direitos, pelo Estado, pela família e pela sociedade em geral, aí incluídas as empresas, conjuntamente. O CDC determina expressamente que é abusiva, e, portanto, ilegal, a publicidade que se valha da deficiência de julgamento e inexperiência da criança. As crianças são ingênuas e inexperientes, portanto, toda publicidade que seja feita para convencê-la a desejar, a querer, deve ser taxada de ilegal.
Com base nesses dispositivos legais, órgãos de proteção e defesa do consumidor e da infância, como Procons, Ministério Público, Ministério da Justiça, podem fiscalizar a conduta das empresas e aplicar medidas sancionatórias cabíveis, como a imposição de multa.
No entanto, na prática, muitas empresas não cumprem o disposto em lei, por acreditar que o abuso deve ser analisado em cada caso, e que nem todo tipo de anúncio ofende os direitos das crianças.
Por conta da distância entre a lei e a realidade, existem medidas que estão sendo tomadas para tornar a lei mais específica, como, por exemplo, o Projeto de Lei 5.921/2001, contra a publicidade infantil, ou o PL 150/2009, que trata da publicidade de alimentos e bebidas com altos teores de sódio, gorduras e açúcares. Há muitas outras iniciativas normativas nos âmbitos federal, estadual e municipal, e também de órgãos do Poder Executivo, como a Anvisa.
No campo da regulação da publicidade de alimentos, o Estado brasileiro passa a se preocupar com o tema, seguindo as diretrizes da Organização Mundial de Saúde e da Organização Panamericana de Saúde, que recomendam fortemente aos Estados a regulação das estratégias de marketing de alimentos, principalmente para crianças.
Rede Mobilizadores – A família pode ser corresponsabilizada pelo consumo de alimentos não nutritivos por parte das crianças e os danos causados à saúde? Por quê?
R.: É importante destacar que o consumo de alimentos não nutritivos não se trata apenas de escolha individual. É preciso analisar a sociedade como um todo e seu sistema alimentar, do qual empresas, famílias e governo fazem parte.
As famílias são elo importante nessa cadeia, mas, infelizmente, não o mais forte no tocante às escolhas alimentares. Isso porque a população, inclusive infantil, é bombardeada por mensagens publicitárias, além de informações constantes em embalagens e rotulagens, que enaltecem as qualidades dos produtos, inclusive como fator de promoção de status social, e é levada a crer que eles são saudáveis, repletos de nutrientes, e devem ser sempre consumidos. No entanto, nem sempre isso é verdade, e os riscos que o consumo excessivo de alguns produtos pode trazer à saúde, desde a infância, não são informados aos consumidores.
Os responsáveis pelas crianças precisam ter informações suficientes, adequadas e claras sobre os riscos que os produtos podem causar à saúde, para poder promover bons hábitos alimentares em sua família.
Mas, não basta colocar toda a responsabilidade sobre eles, quando as crianças são os alvos diretos das estratégias de comunicação mercadológica, inclusive dentro de escolas. O papel dos pais na educação alimentar de seus filhos seria mais fácil se não houvesse, sempre, entre eles, a interferência direta da publicidade, e dos interesses corporativos das empresas, que vendem às crianças ideias de felicidade, poder, status, riqueza, pertencimento, segurança, além, é claro, de diversão, por meio do consumo de alimentos.
Rede Mobilizadores – Qual o papel do Estado, da indústria de alimentos, das empresas de publicidade e da sociedade nesta questão? E como mobilizar a sociedade para o debate e para o exercício do controle social?
R.: Cada um dos atores envolvidos tem o seu papel. O da indústria e dos publicitários, o de respeitar os interesses e direitos das crianças e de saúde pública, para deixar de direcionar qualquer tipo de anúncio ao público infantil. As mensagens deveriam ser feitas exclusivamente para o público adulto, sempre em respeito às normas vigentes sobre o tema. Ao Estado cabe o estabelecimento de normas mais claras e eficazes, além de fiscalizar o cumprimento das leis já existentes. Há vários instrumentos de políticas públicas, recentemente formulados, que devem ser colocados em prática no tocante à regulação da publicidade de alimentos para crianças.
A sociedade tem o importante papel de questionar as empresas e o governo sobre o cumprimento de seu papel, além de exercer efetivamente a proteção dos direitos de todas as crianças. Sua mobilização é fundamental e, para isso, precisa ter acesso à informação. Nesse sentido é que o Instituto Alana, por exemplo, como instituição da sociedade civil, disponibiliza diversos conteúdos como filmes, textos, notícias, em suas redes sociais, e também nos meios de comunicação, além de participar de eventos para diversos públicos, como educadores, profissionais, pais, etc, com o intuito de sensibilizar todos os envolvidos a respeito da proteção da infância contra o estímulo ao consumismo.
Rede Mobilizadores – O que o livro “Publicidade de Alimentos e Crianças – Regulação no Brasil e no mundo” revela sobre a publicidade de alimentos em outros países? Há experiências que deveriam ser replicadas ou reaplicadas no Brasil?
R.: O livro discute questões a respeito da regulação da publicidade de alimentos em 8 países: Brasil, Canadá, Austrália, Estados Unidos, Suécia, França, Alemanha e Reino Unido, além da União Europeia, para subsidiar as discussões legislativas e formulações de políticas públicas no Brasil. Mostra que existem diferentes modelos regulatórios, de acordo com o ambiente político, legal e social em que se desenvolvem.
Há países que se preocupam mais com a vulnerabilidade infantil, como a Suécia, e outros com a obesidade infantil, como a França. Outro ponto abordado é a diferença entra regulamentação estatal e autorregulamentação por meio de regras estabelecidas pelo próprio setor empresarial, e como esses dois sistemas se relacionam em cada país.
No conjunto, as informações trazidas no livro levam ao entendimento de que a autorregulamentação sozinha não é eficaz, e há a necessidade de atuação forte do poder público, que tem o papel prioritário de proteger os interesses da sociedade, e não os interesses comerciais das empresas, tanto no tocante à defesa da infância como da saúde pública.
*1 Ambiente Obesogênico – É um ambiente que promove um consumo extra de comida, sempre pobre em nutrientes.
Entrevista do Eixo Erradicação da Miséria
Concedida à: Renata Olivieri
Editada por Eliane Araujo
Acho importante que seja regulamentada a questão da alimentação infantil, não só nos meio públicos, como também a nível de comunidade e sociedade, que ainda temos a mentalidade de que criança gorda é saudável. Temos que conscientizar todos, e principalmente as próprias crianças que se tornaram “reféns” da mídia e das propostas alimentares sempre sugeridas com formas e truques que incentivam as crianças a se alimentarem mal, o que com certeza no futro será mais um problema de saúde pública.