A maior parte das casas de religiões de matriz africana está localizada em espaços de pobreza urbana e se encontra numa situação de vulnerabilidade social. Por isso, e apesar de suas condições precárias, os terreiros sempre foram espaços de solidariedade para os membros da família de santo, os participantes dos cultos africanos e as populações situadas em seu entorno.
O combate à fome destaca-se como a principal atividade realizada pelos terreiros principalmente por meio da distribuição de alimentos. No entanto, eles não querem apenas continuar distribuindo alimentos, como têm feito, mas desejam se tornar parceiros do Estado, assim como outras religiões, na implementação de políticas públicas de cunho social nas comunidades situadas em seu entorno. Mas, para que substituam o trabalho essencialmente voluntário por ações de assistência social, as comunidades de terreiro têm de estar legalizadas, ou seja, ter um Cadastro Nacional Pessoa Jurídica (CNPJ). Só assim, terão acesso às cestas de alimentos distribuídas pelo governo e à possibilidade de implementar outros programas sociais.
Nessa entrevista, a psicóloga portuguesa Maria Inês Almeida Ribeiro explica as principais dificuldades vivenciadas pelos terreiros e a luta que travam para ampliar seu trabalho social, que contempla especialmente populações em extrema pobreza, situadas em seu entorno. Inês Ribeiro concluiu recentemente mestrado em Serviço Social, na Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), onde estudou o trabalho de combate à fome promovido pelo terreiro Casa do Perdão, situado no Mendanha – Carobinha, no bairro de Campo Grande, na Zona Oeste do estado do Rio de Janeiro.
Rede Mobilizadores – Onde estão localizadas a maior parte das casas de religiões de matrizes africanas no Rio de Janeiro?
R.: O mapeamento das casas de matrizes africanas, realizado no Rio de Janeiro, mostrou claramente que a maior concentração das casas de axé acontece em espaços de pobreza urbana, sendo a Zona Oeste onde se verifica o maior crescimento. Esta constatação nos permite concluir que essas casas se encontram numa situação de vulnerabilidade, pelo nível socioeconômico dos membros do terreiro, que é geralmente baixo/médio e, também, por se localizarem em contextos caracterizados pela pobreza e precariedade de equipamentos sociais (postos de saúde, creches, escolas, etc.) que respondam satisfatoriamente às necessidades da população.
Ao levarmos em conta estes dados, me parece relevante e oportuno lembrar a integração do negro e de sua cultura na sociedade brasileira. A ideia de inferioridade racial dos negros escravos trazidos da África fez com que toda a manifestação cultural e religiosa desse grupo fosse ativamente reprimida pelo Estado. Essa repressão não é um fato histórico tão distante quanto possamos imaginar, basta ter em conta que até o final dos anos 70, as casas de matrizes africanas tinham de ter um registro na Delegacia de Polícia.
Para além disso, e como nos mostram várias pesquisas, inclusive o trabalho de Florestan Fernandes, após a abolição da escravatura, o negro teve muitas dificuldades em adaptar-se à nova organização social da emergente sociedade industrial brasileira, o que necessariamente fez com que os negros fossem destinados às periferias das grandes cidades.
Rede Mobilizadores – Em sua pesquisa de mestrado, a senhora afirma que as casas de religiões de matrizes africanas têm desempenhado um importante papel no combate à fome. Quais as principais características desse trabalho? Qual público é atendido? São apenas os frequentadores dos terreiros?
R.: Os terreiros sempre foram espaços de solidariedade para os membros da família de santo e os participantes dos cultos africanos. Um espaço privilegiado de conservação da memória dos seus ancestrais e da sua cultura, e do cuidado das feridas produzidas por uma sociedade extremamente cruel. O que a pesquisa demonstrou é que este espaço de solidariedade é uma herança histórica, que eu designo de ethos, um saber fazer-se nos terreiros, que sobrevive até aos dias de hoje e que, diante do contexto de vulnerabilidade onde os terreiros se localizam, abrange também a população do seu entorno, ou seja, a população que se dirige aos terreiros com um pedido de ajuda, que pode ser desde dinheiro para pagar uma passagem de ônibus, a um copo de leite para os filhos ou ajuda para procurar um emprego.
Foi diante dessa procura que os terreiros começaram a desenvolver ações sociais, sendo essas ações possíveis, na grande maioria dos terreiros, unicamente por meio de recursos financeiros dos próprios membros, o que compromete a possibilidade de sistematização e ampliação das atividades desenvolvidas. O combate à fome destaca-se como a principal atividade realizada pelos terreiros, principalmente por meio da distribuição de alimentos.
Inicialmente, os alimentos adquiridos pela família de santo são distribuídos de acordo com critérios próprios do terreiro, que procura organizar a distribuição em função dos pedidos de ajuda recebidos e privilegia o atendimento às famílias mais necessitadas da comunidade. Deve-se ter em conta que os pedidos de ajuda são normalmente superiores aos estoques disponíveis. Num segundo momento, e tendo em conta a visibilidade do trabalho social que as comunidades de terreiro têm realizado, os terreiros têm procurado se tornar parceiros do Estado na implementação de políticas públicas de cunho social nas comunidades com que estão em contato.
A relação das comunidades de terreiro com a concretização do direito humano a uma alimentação adequada é muito bem exemplificada no mapeamento Alimento: Direito Sagrado, realizado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), em 2011. O estudo evidencia a situação de insegurança alimentar em que algumas comunidades de terreiro se encontram e valoriza a ação destas comunidades na concretização do direito à alimentação de segmentos populacionais que ainda se encontram num contexto de extrema pobreza.
Desta forma, gradualmente, os órgãos governamentais têm compreendido o importante papel no combate à fome que as comunidades de terreiros desempenham. Contudo, a passagem de um trabalho essencialmente voluntário, baseado na caridade como preceito religioso, para um trabalho de assistência social não se tem dado sem alguma resistência. Isso porque, para terem acesso à cesta de alimentos distribuídas pelo governo e à possibilidade de implementar outros programas sociais, as comunidades de terreiro têm de estar legalizadas, ou seja, ter um Cadastro Nacional Pessoa Jurídica (CNPJ) que é a condição sine qua non para implementarem políticas sociais junto ao Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS).
Rede Mobilizadores – Qual o perfil socioeconômico das populações residentes no entorno das casas de religiões de matrizes africanas? Em geral, quais as principais dificuldades enfrentadas por essas pessoas?
R.: Uma das melhores coisas durante a realização da dissertação de mestrado foi a oportunidade de realizar entrevistas com mulheres que eram contempladas pela distribuição de alimentos realizada pelo terreiro Casa do Perdão, localizado no bairro de Padre Miguel, na Zona Oeste do Rio de Janeiro.
Essas mulheres são beneficiárias do programa Bolsa Família, no entanto, a transferência monetária que recebem é insuficiente para fazer frente às suas necessidades, por isso, elas encontram-se naquilo que designamos de “fome assistida”, ou seja, apesar de não estarem numa situação de fome, suas necessidades alimentares são satisfeitas não por intermédio de recursos financeiros próprios, e sim pela participação em programas sociais do governo e igrejas que estão na sua comunidade.
São mulheres desempregadas, com poucas possibilidades de serem integradas no mercado de trabalho, pela ausência de qualificação profissional e por serem as principais responsáveis domiciliares pelos filhos pequenos.
Durante a realização das entrevistas, uma das principais preocupações manifestadas foi a possibilidade de seus filhos se envolverem com o tráfico de drogas, muito presente no bairro. Tratando-se de famílias monoparentais, o cuidado dos filhos se constitui como a principal atividade. Sem trabalho, e por isso sem gerarem renda, é nas igrejas e nos terreiros que satisfazem suas necessidades, que vão desde a cesta de alimentos que recebem do terreiro às roupas para os filhos doadas pela igreja católica.
Essas informações nos conduzem à necessária reflexão sobre o papel extremamente importante que as igrejas continuam a ter para essas populações, incluindo aqui os terreiros, pois no que se refere ao recebimento de benefícios sociais, os terreiros são encarados por estas populações como qualquer outra igreja.
Rede Mobilizadores – Essas populações têm uma relação de proximidade com os terreiros? Qual a importância deles no cotidiano?
R.: Ao contrário daquilo que se verifica relativamente às outras igrejas, principalmente nas igrejas pentecostais, as ações sociais desenvolvidas pelos terreiros não se dão em função da presença obrigatória nos cultos afrodescendentes. Podemos dizer que a ação social é pensada em função da observação das necessidades da comunidade e dos pedidos de ajuda feitos pela população, não tendo, por isso, a intenção de evangelizar ou chamar membros para os terreiros.
Nas entrevistas realizadas, facilmente se verifica que embora as mulheres contempladas pela distribuição de alimentos conheçam o terreiro e o trabalho social que este tem desenvolvido na comunidade, até mesmo porque a Mãe de Santo cresceu na própria comunidade, elas não são membros ou participantes das atividades do terreiro.
Contudo, a fronteira algumas vezes é tênue. Como se sabe, o alimento tem uma dimensão simbólica para as religiões de matrizes africanas, pois é através dele que se fazem pedidos e agradecimentos aos Orixás. Um Orixá bem nutrido é uma fonte de proteção. Desta forma, durante as festas de celebração dos Orixás, os terreiros preparam uma grande quantidade de comida. Esta é oferecida em homenagem aos Orixás, e também, partilhada com os membros da família de santo e os participantes das festas.
Muitas vezes, a comunidade de entorno participa, pois sabe que um prato de comida não lhe vai ser negado. Neste sentido, as festas organizadas pelos terreiros podem ser consideradas também uma forma de ação social, aberta a todos.
Rede Mobilizadores – Você afirma que a luta das religiões de matrizes africanas por reconhecimento vai além de temas tradicionais como intolerância religiosa e racismo, incluindo a luta por direitos de cidadania? Como isso se dá na prática?
R.: É um caminho que ainda estamos a percorrer. Os temas do racismo e da intolerância religiosa, hoje entendidos como questões de Direitos Humanos, sempre estiveram relacionados com as religiões de matrizes africanas. Os mapeamentos das casas de matrizes africanas, que têm sido realizados nas principais cidades do país, dão visibilidade às comunidades de terreiro no espaço público, chamando atenção para a necessidade de concretizar esses direitos já contemplados na Constituição de 1988.
A esses direitos se junta uma nova pauta reivindicativa, onde, sem dúvida, a cidadania ocupa um lugar de destaque. Falar aqui de cidadania é entendê-la num duplo sentido: na valorização da história de resistência do povo de santo, que participou na construção da especificidade da identidade brasileira, e no papel que as comunidades de terreiro podem desempenhar na melhoria das condições de vida de segmentos populacionais que ainda se encontram vivendo na pobreza. Isto pressupõe, necessariamente, o reconhecimento do povo de santo como um interlocutor válido e ativo na esfera pública no enfrentamento da questão social e sua relação com as políticas públicas de cunho social.
É neste contexto que a legalização das casas de axé, entendida como a aquisição de um CNPJ, é considerada um passo fundamental para estas comunidades. Somente assim poderão inscrever-se no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), ter acesso e implementar políticas de cunho social. Deve-se aqui salientar que, devido ao preconceito e estigma que historicamente tem sido associado às casas de matrizes africanas, agravado pelo isolamento social em que muitas casas ainda se encontram, acentua o profundo desconhecimento destas comunidades dos seus direitos. Contudo, a recente participação ativa de pais e mães de santo tem contribuído para o fortalecimento e a organização de um movimento político das comunidades de terreiro que reivindica a concretização destes direitos.
Este não é um caminho que tem sido fácil de trilhar pois, a par da vulnerabilidade geográfica, como já foi mencionado, os terreiros encontram-se num contexto de vulnerabilidade jurídica, pois grande parte deles ainda não possui um CNPJ, e política, pois sistematicamente membros de terreiros continuam a ser alvo de ações de intolerância religiosa.
Essa intolerância verifica-se não apenas em pequena escala, quando os membros da família de santo são, por exemplo, insultados em espaços públicos, como também em grande escala pelo racismo institucional. Como se compreende, a entrada ou a penetração das casas de matrizes africanas no espaço público depara-se com obstáculos com os quais nem sempre é fácil se dialogar.
Rede Mobilizadores – Como você afirma, historicamente, as religiões de matrizes africanas têm sido marginalizadas pelo Estado e pela sociedade. Quais são hoje as principais reivindicações das religiões de matrizes africanas em relação ao Estado?
R.: O conhecimento da história do negro no Brasil apresenta-se como um pesado legado, deixando de fora alguns acontecimentos que não foram incluídos, como o reconhecimento e valorização das redes de solidariedade construídas pelas comunidades de terreiro no enfrentamento da questão social. A nova visibilidade das comunidades de terreiro procura o seu reconhecimento, e como tal não pode deixar de trazer à discussão determinados temas.
Sem dúvida, muito se tem feito relativamente ao acesso universitário dos negros, mas o que dizer sobre a qualidade de ensino básico nas escolas públicas em que a grande maioria dos estudantes é negra?
Como solucionar a demonização das religiões de matrizes africanas pelas Igrejas pentecostais, que se tem refletido numa autêntica disputa por fiéis, em que a assistência social se transforma num campo de batalha. Se nos últimos anos se tem constatado um avanço nos programas sociais, ainda existem muitas lacunas e estas continuam a ser preenchidas pela ação social das igrejas. A questão é quando o campo da assistência social se torna um instrumento de captação de fiéis e desvalorização social de outras crenças.
Que lugar podem efetivamente as comunidades de terreiro ter no espaço público se, perante um colar de contas, o racismo institucional é rapidamente acionado?
Estas são algumas das questões que sempre estiveram presentes ao longo da construção da minha pesquisa, frequentemente colocadas pelas mães de santo que entrevistei e do contato com membros da família de santo ao longo do processo de pesquisa. São também questões colocadas ao Estado, entendendo aqui o Estado não apenas como governo, mas toda a sociedade brasileira.
Em resumo, as comunidades de terreiro, principalmente no que diz respeito à realização do trabalho social, lutam para ter os mesmos direitos e acessos de outras religiões, como a igreja católica e as evangélicas. No nosso entendimento, isto pressupõe necessariamente a valorização social dessas comunidades.
Entrevista concedida à: Eliane Araujo
Editada por: Sílvia Sousa