A Constituição Federal de 1988 criou o Sistema Único de Saúde (SUS), ao qual atribuiu a responsabilidade pela assistência à saúde de toda população brasileira. É um dos poucos sistemas de acesso universal à saúde no mundo.
Apesar de atuar para melhoria de diversos indicadores de saúde, como a redução da mortalidade infantil, e de ter trazido avanços importantes a exemplo da universalização do diagnóstico e tratamento do HIV/AIDS, os transplantes, os programas nacionais de imunização e as redes de doadores de medula, na assistência individual o SUS ainda não oferece um padrão homogêneo de oferta e qualidade de serviços.
Para cumprir o que dispõe a Constituição, o SUS necessita de recursos humanos, técnicos e financeiros que possam viabilizar um atendimento de qualidade, mas compete por financiamento com a medicina suplementar.
Nesta entrevista, a professora Lígia Bahia, da Faculdade de Medicina e pesquisadora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (Iesc) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), afirma que a saúde brasileira está passando por um claro processo de privatização e que o SUS não é prioridade para os governos. Faltam recursos e gestão eficiente.
Ela lembra que a lógica das empresas de planos e seguro saúde é contrária ao atendimento das necessidades da população, pois tendem sempre a procurar os nichos mais lucrativos, e isso exclui, por exemplo, a parcela mais idosa da população e as pessoas com doenças crônicas. Apesar dessa violação de direitos, o órgão responsável pela regulamentação do setor, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), não vem cumprindo seu papel.
Rede Mobilizadores – Por que o Sistema Único de Saúde (SUS), concebido na Constituição de 1988, ainda não se efetivou como um sistema público de saúde, com cobertura universal e atendimento integral de qualidade? Quais os maiores entraves para o aprimoramento do SUS?
R.: O maior entrave é de natureza política. O SUS não é prioridade para os governos. Essa decisão de não conferir à política universal de saúde a relevância devida repercute na insuficiência dos orçamentos e em imensas dificuldades de gestão. Fica-se diante de um circulo vicioso: falta dinheiro e os parcos recursos são desperdiçados.
Rede Mobilizadores – Podemos dizer que está acontecendo uma privatização da saúde no Brasil? Por quê? Esse é um processo reversível? De que modo?
R.: Não há duvidas sobre a privatização da saúde, basta olhar para a paisagem coalhada de anúncios de empresas de saúde das nossas cidades e para a quantidade de clínicas e laboratórios privados criados recentemente. A reversibilidade do processo é possível, mas não é trivial porque os grupos de interesse para intensificação da privatização se fortaleceram.
Rede Mobilizadores – Hoje se fala que o governo vai oferecer subsídio (financiamento público) para ampliação da oferta de planos e seguros de saúde com objetivo de atender especialmente as milhares de pessoas que ascenderam economicamente, a chamada nova classe média. O que acha da iniciativa? Quais os riscos envolvidos?
R.: Isso já acontece. As empresas de planos de saúde foram contempladas com redução da contribuição para o Programa de Integração Social (PIS) e a Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins), no final do ano passado, e desfrutam de outros benefícios fiscais, e nem por isso estão atendendo bem.
É uma ilusão supor que o repasse direto ou indireto de recursos para essas empresas resolve o problema de saúde. A lógica de atuação dessas empresas é contrária ao atendimento das necessidades de saúde. Elas tenderão sempre a procurar nichos mais lucrativos.
Rede Mobilizadores – Temos visto cada vez mais na imprensa aumentos abusivos nos planos de saúde, especialmente nos planos coletivos e nos planos individuais de pessoas que se aproximam dos 60 anos. Qual o papel da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) para coibir isso? Como avalia a atuação da agência?
R.: As empresas, deixadas sem uma regulamentação adequada, tendem a expulsar idosos e doentes de suas carteiras. Para evitar essa seleção perversa é preciso uma regulação vigorosa, e a ANS está longe de cumprir esse papel, na medida em que mantém em seus quadros de diretoria integrantes do mercado a ser fiscalizado.
Rede Mobilizadores – Diante do envelhecimento da população e tendo em vista que os idosos não interessam ao sistema privado, quais são as perspectivas das pessoas com mais de 60 anos que não tiverem capacidade financeira de arcar com planos privados?
R.: As pessoas com mais de 60 anos estão diante de perspectivas muito difíceis porque não conseguem arcar com os aumentos abusivos e se habituaram a ser atendidas por determinados profissionais de saúde vinculados a esses planos. A perda de vinculo com médicos e serviços de saúde de confiança para os idosos pode inclusive causar problemas de ansiedade, angústia. Seria preciso instituir regras para evitar a descontinuidade da assistência para idosos.
Entrevista concedida à: Eliane Araujo
Editada por: Sílvia Sousa