De acordo com o filósofo Euclides Mance, sob a perspectiva do bem-viver, o modelo de desenvolvimento atual em vez de contribuir para a expansão das liberdades públicas e privadas, promove seu enfraquecimento, com a destruição dos ecossistemas, com o enfraquecimento da democracia frente ao fluxo de capitais financeiro, dentre outras coisas.
Segundo ele, crescimento econômico não é indicador de bem-viver. Mais: o desenvolvimento econômico na ótica do bem-viver é medido pela expansão da economia solidária, pela democratização das relações de produção sob o princípio da autogestão, pelo volume de bens e serviços gerados, distribuídos e consumidos sustentavelmente para atender às necessidades materiais públicas e privadas, e pela remontagem solidária e ecológica das cadeias produtivas, reorganizando os fluxos econômicos para que sejam de proveito de todos.
Rede Mobilizadores – Em breves linhas, em que prerrogativas está baseado o modelo de desenvolvimento convencional ou atual? Quais os seus primórdios e como se difundiu pelo mundo a fora?
R.: O modelo de desenvolvimento, atualmente hegemônico, é o capitalista. Ele parte da constatação de que a natureza, as pessoas, as sociedades e o conhecimento podem ser convertidos em fator de produção econômica e que os produtos gerados pelo trabalho devem ser convertidos em mercadoria, devem ser postos à venda nos mercados para a realização do lucro, possibilitando acumulação de valor econômico por aqueles que vencem a concorrência ao disputar esses mercados.
Assim, a natureza, as pessoas, as sociedades e os conhecimentos humanos são convertidos respectivamente em capital natural, capital humano, capital social e capital intelectual a serem utilizados no processo de produção de valor econômico com fins de lucro.
Como a lógica que preside esse desenvolvimento é maximizar a acumulação do valor econômico gerado e não a realização do bem-viver de todos, pouco importa se a natureza reduzida a capital natural será explorada de modo a destruir o equilíbrio dos ecossistemas, exauridos em sua capacidade de autorreprodução, se os resíduos gerados contaminarão os solos, as águas e o ar; pouco importa se as pessoas qualificadas como capital humano, com conhecimentos cada vez mais específicos para operar tecnologias sempre mais complexas, ficarão desempregadas; pouca importa se as sociedades terão valores culturais milenares aniquilados em estratégias globalizadas na disputa por mercados consumidores ou na exploração de fornecedores de matérias primas, gerando a concentração de riqueza pelas corporações que penetram nessas sociedades e a exclusão econômica de populações aí residentes; pouco importa se a inteligência humana será explorada para produzir quinquilharias desnecessárias para, em seguida, se tornarem desejadas por meio da publicidade. Desde que tudo isso gere lucros. Enquanto isso, centenas de milhões de pessoas não têm acesso sequer ao essencial para viver.
Os primórdios desse modelo se reportam à industrialização capitalista e ao modo de reduzir as pessoas, natureza e sociedades a meros fatores de produção – negando valores democráticos fundamentais, ao privilegiar-se o asseguramento da acumulação ilimitada de capitais em detrimento da realização de direitos humanos. O capitalismo passou por uma fase concorrencial, seguida por uma fase monopolista, sofreu novos ajustes no período recente da globalização financeira e vai entrando na fase pós-industrial. Os signos se converteram em mercadoria que, uma vez produzidos, podem ser replicados virtualmente ao infinito, possibilitando novas formas de acumulação de valor econômico a quem detenha direitos sobre seu uso e reprodução [1]. Desse modo, nas economias assim chamadas de desenvolvidas apenas 25% dos postos de trabalho estão no setor industrial, e menos de 4%, no setor agrícola. A maioria está no setor de comércio e serviços. Ao passo que na África Subsaariana 65% dos postos de trabalho estão na agricultura e 10%, no setor industrial. Conforme indicadores do Banco Mundial sobre Economia do Conhecimento, numa escala de zero a dez, os países pobres alcançam o índice de 1,58, enquanto os países ricos chegam a 8,50.
A difusão desse modelo pelo mundo afora esteve associada ao colonialismo e ao neocolonialismo, que perdurou em algumas regiões africanas até os anos 70 do século passado, e à subordinação e dependência das economias periféricas em relação aos fluxos tecnológicos e financeiros globalizados. Por outra parte, seja com políticas keynesianas no século XX e, posteriormente, com a difusão do neoliberalismo a partir da década de 1980 (desregulando as economias para favorecer a circulação dos capitais em movimentos globais), essa lógica se propagou mundialmente, tratando natureza, pessoas e sociedades como fatores de produção com vistas a alcançar metas de crescimento econômico sem levar em conta os impactos ambientais, sociais e culturais e o modo como reproduzem esse modelo fundado no princípio de escassez – em que a oferta tem de ser menor que a demanda para que haja lucro. Razão pela qual a vida útil dos produtos é encurtada, e a demanda, insuflada pelo consumismo, para que se possa vender mais para aqueles que tenham dinheiro a oferecer em troca dessas mercadorias.
Por sua vez, os milhões e milhões de famintos e desempregados que não têm dinheiro para comprar alimento, remédios, produtos eletrônicos ou pagar pela prestação de serviços, não são tratados como atores econômicos a serem atendidos em suas necessidades – pois a fome e a vontade de saber, desacompanhadas de dinheiro para satisfazê-las não são demandas de mercado.
Rede Mobilizadores – Quais as principais críticas a este modelo?
R.: Trata-se de um modelo ecologicamente insustentável. Milhares de espécies estão ameaçadas de extinção, pela devastação dos ecossistemas em que habitam, bem como pela exploração predatória dos recursos naturais. Mas também do ponto de vista econômico e social ele é insustentável, como mostram os indicadores de pobreza, desemprego e endividamento global.
Do ponto de vista democrático, este modelo está enfraquecendo a capacidade das sociedades assegurarem as liberdades públicas e privadas eticamente exercidas, tal como a liberdade democrática de as pessoas se alimentarem, assegurada formalmente como um direito humano fundamental.
Em 2008, por exemplo, os investidores nas bolsas de valores pelo mundo afora migraram seus investimentos que estavam lastreados em papéis que oscilavam negativamente, em razão da queda dos preços de imóveis hipotecados nos Estados Unidos, passando a investir no mercado futuro de commodities, não apenas metálicas, como ouro e prata, mas também commodities alimentares. A negociação de contratos futuros de arroz, milho, trigo e soja contribuiu para a elevação dos preços de alimentos no mundo todo. E, assim, enquanto investidores ganhavam dinheiro realizando lucros no mercado futuro de alimentos, milhões de pessoas no mundo não tinham mais dinheiro suficiente para comprar comida para sustentar suas famílias, pois o preço dos alimentos no presente subia acompanhando sua elevação nos mercados futuros.
Por sua vez, o endividamento das pessoas e dos Estados coloca a democracia como refém do capital. Se o capital financeiro não compra os títulos públicos, os Estados não têm como pagar suas dívidas. E, então, têm de oferecer juros ainda maiores por esses papéis. E, assim, a arrecadação que deveria assegurar o bem-público dos cidadãos, com a oferta de serviços públicos de qualidade pelo Estado, assegura a acumulação privada de lucro.
Desse modo, a democracia das instituições vai submergindo na plutocracia das corporações e do capital financeiro, que exige garantias sempre maiores de que irá receber retornos mais elevados para financiar os países e pessoas cada vez mais endividados – pois sem esse crédito não haverá solvência dos contratos nos mercados. E, sem isso, os capitais se vão e, com eles, se vai a possibilidade de seguir trilhando o mesmo desenvolvimento subalterno e dependente.
Para se ter uma ideia, a dívida pública em percentual do PIB saltou de 59%, em 2007, para 82,5% em 2011, na União Europeia. Em Euros, isso significou um salto de 7,3 trilhões de euros para 10,4 trilhões de euros em dívida pública em apenas 4 anos. No caso dos Estados Unidos, esse percentual é de 93,20%. No caso do Japão, essa cifra é de 220%. Isso significa que, para quitar essas dívidas, toda a riqueza produzida em dois anos no Japão deveria ser entregue ao capital financeiro; o mesmo teria de ser feito com 93% de toda a riqueza produzida nos Estados Unidos; ou com 82% da riqueza produzida na Europa. Uma investigação sobre os reais credores dessas dívidas, aqueles que detêm os títulos, e sobre os que ganham nesse mercado, facilmente nos levaria à lista das maiores fortunas no mundo e dos que têm maior ingerência no controle não democrático sobre a atuação dos Estados.
A insustentabilidade desse modelo de desenvolvimento, como vemos, não é apenas ambiental, mas também econômica, social e política.
Rede Mobilizadoes – Como tais críticas se materializaram, em especial, nos países em desenvolvimento, como os latinoamericanos?
R.: Os países latinoamericanos foram integrados nesse modelo com o processo de colonização. Após as independências políticas, permaneceu a dependência econômica em relação às tecnologias e capitais externos. Inicialmente, esses países além de exportadores de produtos primários eram mercado consumidor de produtos industrializados gerados nos centros economicamente hegemônicos. Na sequência, em alguns setores, as empresas multinacionais passaram a obter maiores ganhos, implantando unidades produtivas nos países dependentes, havendo uma industrialização periférica subordinada aos projetos das matrizes centrais, aproveitando-se com isso a mão de obra barata nas periferias. Cresce, assim, o volume de operações de crédito fundadas no capital externo para manter a venda dos produtos dessas empresas estrangeiras nas periferias. E com as transformações tecnológicas que se desdobram a partir dos anos 1970, o processamento de informação possibilitou a interligação global dos mercados financeiros e a difusão de mecanismos especulativos, com a valorização de capitais em mercados de arbitragem, particularmente com ações relacionadas a ganhos com compra e venda de moedas, mas igualmente em operações especulativas com títulos públicos e em mercados de ações.
Assim, a instabilidade econômica em países latinoamericanos, ao longo dos anos 1980, preparou terreno para um conjunto de reformas neoliberais, implementadas nos anos 90 e aprofundadas na primeira década deste século. A economia latinoamericana em geral continuou a ser uma grande exportadora de produtos primários, seus mercados internos são abastecidos em grande medida com produtos de multinacionais gerados em plantas instaladas no exterior ou nos próprios países latinoamericanos. Embora com os avanços na área de infraestrutura para transmissão de dados nos últimos anos tenha se aprofundado a brecha tecnológica na microeletrônica, informática, robótica, tecnologia dos materiais, biotecnologia e nanotecnologia em relação aos centros que mais investem em pesquisa e desenvolvimento nessas áreas.
Do ponto de vista ambiental e social esse desenvolvimento dependente gerou um impacto ecológico imenso com a devastação de grandes áreas de florestas, ao mesmo tempo que desencadeou movimentos migratórios que incharam as grandes cidades com pessoas buscando trabalho e atendimento nas redes públicas de saúde, educação, etc, consolidando-se anéis de pobreza e miséria em suas periferias. A disputa em torno da ocupação do espaço urbano e de necessidades coletivas como transporte, saúde, segurança, moradia, fazem surgir as questões urbanas, dado o caráter de insatisfação dessas necessidades sociais, posto que boa parte dos recursos públicos são canalizados para o pagamento de dívidas e não para o asseguramento de políticas públicas de qualidade.
Rede Mobilizadores – Poderia citar alguns dos efeitos (impactos) sociais e ambientais do modelo de desenvolvimento em curso?
R.: Podemos citar como exemplo em escala global alguns dados relacionados a alimentação e trabalho, que são dois direitos humanos inscritos na Declaração Universal de 1948, respectivamente artigos n. 25 e 23. Atualmente, quase um bilhão de pessoas passa fome no mundo[2], sendo que, na Europa, já em 2009, a FAO informava que cerca de 43 milhões de pessoas podiam ser consideradas em situação de risco de pobreza [insegurança] alimentar[3]. No caso dos Estados Unidos, o Departamento de Agricultura (USDA) informava que, em 2010, 14,5% das famílias estavam em insegurança alimentar, sendo que em mais de 4 milhões de domicílios o consumo alimentar fora reduzido e que padrões cotidianos de alimentação foram interrompidos por falta de recursos para aquisição de alimentos[4].
Nos países desenvolvidos há, atualmente, 19 milhões de pessoas incluídas no mapa da fome. Na América Latina e Caribe são 53 milhões. Por sua vez há 200 milhões de desempregados no mundo, conforme as estatísticas oficiais – isto é, de pessoas que procuram emprego, pois as que não mais procuram não entram na estatística de desempregados. Mais de cem países possuem taxa de desemprego acima de 10%. E 40 países possuem taxas de desemprego acima de 20%[5]. O Eurostat informava, em março de 2012, que existiam quase 25 milhões de desempregados na Europa, dos quais 17 milhões viviam na União Europeia[6]. Na Espanha, o desemprego está, atualmente, acima de 24%. Na América Latina, há 15,4 milhões de pessoas desempregadas atualmente.
Rede Mobilizadores – Neste cenário, que ideias estão englobadas na formulação de bem-viver? Quando surgiu a expressão e em que contexto?
R.: A expressão bem-viver como categoria filosófica surgiu em 1998 num artigo que publiquei com o título A Revolução das Redes[7], síntese de um livro publicado no ano seguinte com o mesmo título. O bem-viver é um dos conceitos fundantes da estratégia de organização de redes colaborativas de economia solidária com vistas à construção de sociedades pós-capitalistas. Com a tradução dessa expressão a diferentes idiomas, difundiu-se o termo buen-vivir na América Latina, que, anos depois, foi incorporado na constituição do Equador, juntamente com a noção de economia solidária a ela associada como setor econômico. A expressão bem-viver, que concebi no seio da filosofia da libertação, qualifica um determinado modo de exercerem-se as liberdades públicas e privadas. Em síntese, compreende-se que a realização das liberdades públicas e privadas exige condições materiais, políticas, educativas, informativas e éticas sem as quais essas liberdades não podem se realizar ou se expandir. E que o sentido da realização dessas liberdades é assegurar sustentavelmente o bem-viver de todos.
As condições materiais da liberdade são servidas pelos ecossistemas e pelo trabalho humano. No seio das culturas humanas, o exercício das liberdades exige inúmeras mediações naturais e tecnológicas sem as quais a liberdade não pode ser exercida. Sem oxigênio, água, calor e alimentos, por exemplo, a liberdade humana se extingue. Sem alimento não se pode realizar a liberdade de comer e de viver. Sem escolas, livros ou outros recursos materiais educativos, a liberdade de estudar fica prejudicada. É preciso, portanto, assegurar o equilíbrio dinâmico dos ecossistemas e a universalização do acesso aos bens e serviços como condições de garantia dos meios materiais, naturais e culturais, requeridos ao exercício das liberdades públicas e privadas.
As condições políticas do exercício da liberdade referem-se ao direito de cada pessoa exercer seu poder pessoal de decisão e de realização tanto na esfera de sua vida privada, nas micropoliticas do cotidiano, quanto na esfera da vida pública, nas macropolíticas relacionadas aos aparatos de Estado e da Sociedade Civil. A autonomia e a democracia, com o asseguramento de direitos que protejam o exercício de ambas as liberdades, são requeridas para que estas liberdades possam realizar-se. Sem o exercício democrático do poder na esfera pública e sem o respeito à autonomia eticamente exercida na esfera privada, a realização das liberdades fica prejudicada.
As condições educativas e informativas são igualmente requeridas ao exercício das liberdades humanas. Sem as informações relevantes para nossas escolhas, as decisões ficam prejudicadas. E sem a educação que possibilita interpretar, de múltiplas formas, as informações em particular e o mundo como um todo, igualmente nossa liberdade fica diminuída. Quanto maior o acesso à diversidade de culturas, visões de mundo e modos de realizarem-se as liberdades, tanto mais amplos são os horizontes abertos para a realização das liberdades de cada pessoa e de todos os povos.
Por fim, a condição ética do exercício das liberdades resume-se a um princípio básico: a liberdade é eticamente exercida, tanto na esfera privada quanto pública, quando promove igualmente a liberdade dos demais. Se promove a liberdade dos outros, ela é exercida com vistas a assegurar a cada pessoa e a todas as sociedades, nas melhores condições possíveis, os meios materiais, políticos, educativos e informativos requeridos ao ético exercício de suas liberdades. Sem esse componente ético, as liberdades privadas tendem a aniquilar as liberdades públicas, e as liberdades públicas tendem a aniquilar as liberdades privadas. Assim, as liberdades públicas e privadas somente podem se expandir quando exercidas de maneira eticamente solidária, pois a solidária expansão de uma requer o solidário asseguramento da outra.
Mas ser livres para quê? Para que desenvolver e aperfeiçoar os meios materiais, políticos, educativos e informativos que possibilitam expandir as liberdades públicas e privadas eticamente exercidas? Segundo nossa posição filosófica, o sentido de realização da liberdade humana é o bem-viver. Não se trata da boa-vida do homem livre, formulada por Aristóteles, que supunha a necessária manutenção do trabalho escravo como sua condição material de sustentação. Nem a moderna noção de bem-estar mediada pelo Estado, que supõe a subalternidade do trabalho em relação ao capital, como fonte de valor econômico para a cobertura das políticas públicas. Nem a noção de bem-estar capitalista relacionada à posse e ao consumo de mercadorias.
A categoria de bem-viver integra, de maneira superadora, as duas vertentes da ética, assentadas na defesa do bem ou da vida, encontrando um ponto de apoio externo aos acordos comunicativos que se estabeleçam sobre os valores axiológicos. A noção de bem-viver historiciza os conceito de bem e de vida, ao mesmo tempo em que opera como categoria semiótica para uma análise crítica das situações de dominação, opressão e exclusão. Em outras palavras, com base em indicadores objetivos da realidade concreta pode-se analisar em que medida o bem-viver das pessoas e dos povos está assegurado ou negado, analisando-se em que medida os meios materiais, políticos, educativos e informativos estão solidariamente compartilhados para a realização das liberdades públicas e privadas eticamente exercidas. Sob a perspectiva do bem-viver, podemos afirmar que o modelo de desenvolvimento atual, em vez de contribuir para a expansão das liberdades públicas e privadas eticamente exercidas, tem promovido o enfraquecimento dessas liberdades, com a destruição dos ecossistemas, com o aumento da população que passa fome no mundo, com a ampliação da brecha tecnológica que separa ricos e pobres em escala planetária, com o enfraquecimento da democracia frente ao fluxo de capitais financeiros – apenas para citar alguns exemplos.
Rede Mobilizadores – Quais os principais pontos convergentes dentro da pluralidade de ideias em torno da formulação?
R.: A noção de bem-viver criou um campo de interlocução importante no diálogo intercultural a respeito de diferentes modos de vida e de desenvolvimento econômico e social. No final do século passado, a tradução de bem-viver a alguns idiomas causava certo estranhamento pela adoção de expressões incomuns à época, tais como bien-vivir e buen-vivir em espanhol e bene-vivere em italiano. Em francês usou-se bien-vivre, expressão já difusa nesse idioma. Em alemão e inglês, adotaram-se expressões como guten Leben e well-being, que talvez não sejam as mais adequadas. Em outras publicações acadêmicas, alguns estudiosos têm mantido o vocábulo bem-viver grafado em português[8].
Mais recentemente, em espanhol, encontrou-se no vocábulo buen vivir uma expressão para os conceitos de sumaj kamaña em quechua, sumak kawsay em quichua e allin kausaw em aymara. Na constituição do Equador, promulgada em 2008, o termo buen vivir, como tradução de sumak kawsay, aparece 23 vezes, referido inicialmente a uma “forma de convivência cidadã, em diversidade e harmonia com a natureza” e desdobrado, posteriormente, nos direitos do bem-viver e no regime do bem-viver. Por sua vez, sumaj kamaña, traduzido como vivir bien, foi incorporado na constituição boliviana, em seu artigo 8º, como um dos princípios ético-morais da sociedade plural que cabe ao Estado assumir e promover.
Assim, a expressão bem-viver veio ganhando grande difusão entre os movimentos sociais e políticos latino-americanos, inicialmente a partir do debate sobre os conceitos de economia solidária e de redes colaborativas solidárias; posteriormente, a partir das mobilizações populares relacionadas às constituintes boliviana e equatoriana; e, por fim, com a sua popularização internacional através de discursos dos presidentes Evo Morales, da Bolívia, e Rafael Correa, do Equador. Em 2010, o bem-viver foi considerado como elemento constitutivo de uma nova agenda internacional pela organização do Fórum Social Mundial de Porto Alegre.
Na minha opinião, é importante o aprofundamento do diálogo intercultural sobre o bem-viver. Mas defendo que ele não deve ser reduzido a uma mera categoria utópica de integração harmoniosa dos seres humanos entre e si com a natureza, a ser realizado no porvir com o advento de uma terra sem males. Defendo que é preciso compreender o bem-viver como categoria analítica que permite criticar, aqui e agora, os processos de dominação e de libertação presentes nas diferentes culturas e realidades humanas. Assim, por exemplo, em meio ao que eu chamo de revolução das redes, o bem-viver permite qualificar um determinado tipo de consumo, o consumo para o bem-viver, que se realiza como negação do consumo alienado e do consumo forçoso ou compulsório – ambos peculiares ao capitalismo atual.
Desse modo o bem-viver refere-se não apenas a um futuro de paz, liberdade, justiça e de integração harmoniosa com a natureza que todos nós desejamos, mas, fundamentalmente, refere-se a processos de libertação econômica a serem realizados hoje e por toda a parte, para que o bem-viver das pessoas não seja negado em processos de dominação e de opressão, em processos que negam as liberdades públicas e privadas para privilegiar a concentração de capitais pelo mundo afora ou outras formações de poder autoritárias.
Rede Mobilizadores – Quais os questionamentos em comum na formulação de Bem-viver no que se refere à concepção de crescimento econômico como sinônimo de desenvolvimento e à vinculação entre consumo e bem-estar?
R.: O crescimento econômico não é indicador de bem-viver. O principal problema do capitalismo é que ele se funda na acumulação de valor econômico, razão pela qual a demanda tem de ser maior que a oferta para que haja lucro. O capitalismo não está centrado na produção de bens e serviços para atender às necessidades das pessoas. Sob o capitalismo é preciso insuflar a demanda de consumo para que se possa realizar o lucro com a venda de mais mercadorias. Isso, porém, é insustentável. Em 2008, o capitalismo experimentou uma crise de superprodução. Mas superprodução em relação a quê? Em relação às demandas de mercado. Mas como podia haver crise de superprodução se mais de 870 milhões de pessoas estavam passando fome, se havia tanta gente sem casa, sem remédios e desprovidos de serviços de comunicação, por exemplo, quadro esse que se agravou de lá para cá? Pela simples razão de que a fome ou qualquer carência somente existe como demanda de mercado se estiver acompanhada de dinheiro ou de algo que porte valor econômico e que possa ser oferecido em troca de sua satisfação e possibilite a acumulação de lucro. Fome sem dinheiro não pode ser saciada nos mercados.
O crescimento econômico capitalista se foca em oferecer produtos a quem tenha dinheiro para pagar. Por isso há um esforço por gerar-se crédito financeiro para ativar a economia, antecipando pagamentos que se convertem em débitos a serem saldados futuramente pelos tomadores do crédito. Assim, é cada vez maior a legião dos endividados em todo o mundo. Oferecem suas casas e automóveis como garantia de empréstimos, em hipotecas e refinanciamentos de dívidas. De outro lado, nessa mesma matriz pode-se ativar o crescimento econômico e a geração de lucros, reduzindo-se a vida útil dos produtos, explorando-se predatoriamente os ecossistemas, insuflando guerras e mesmo revoluções que consumirão armas e munições.
Por sua vez, o desenvolvimento econômico na ótica do bem-viver se mede pela expansão da economia solidária, democratizando as relações de produção sob o princípio da autogestão, pelo volume de bens e serviços gerados, distribuídos e consumidos sustentavelmente para atender às necessidades materiais da realização das liberdades públicas e privadas eticamente exercidas, pela remontagem solidária e ecológica das cadeias produtivas, reorganizando os fluxos econômicos de modo a desconcentrá-los em proveito de todos.
A economia solidária está centrada na produção de bens e serviços para atender às necessidades das pessoas. O fundamental aqui não é o crescimento do valor econômico produzido ou acumulado, mas do volume de necessidades atendidas sustentavelmente – seja em formas de intercâmbio monetário ou não-monetário. Aqui, quanto mais se alonga a vida útil dos produtos tanto melhor, pois mais recurso sobra para atender a outras necessidades igualmente servidas na economia solidária. Aqui, a fome ou outras necessidades desacompanhadas de dinheiro ou de valor econômico podem encontrar sua satisfação, com a geração de créditos solidários a serem saldados futuramente com a oferta de bens e serviços pelo tomador do crédito – ou mesmo em horas de trabalho por ele colocadas à disposição de quem precise em bancos de tempo integrados em redes colaborativas.
O desenvolvimento aqui considera diferentes fatores, entre eles o econômico, promovendo desenvolvimento local, distribuição de renda, reorganização solidária das cadeias produtivas; o social, promovendo relações responsáveis do indivíduo para com a coletividade e vice-versa; o político, promovendo a participação cidadã, a autogestão social e o pleno respeito aos direitos sociais, econômicos, políticos, pessoais, culturais e ambientais; o cultural, compondo a valorização das identidades no respeito às diferenças; o ético, afirmando valores que viabilizam as relações humanas centradas na promoção das liberdades, da justiça, dos direitos humanos e da paz entre as nações; o ecológico, considerando as dimensões de integração do ser humano com a natureza, do rural e do urbano; a manutenção do meio ambiente saudável e da biodiversidade; buscando satisfazer as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras em suprir suas próprias necessidades, tendo em conta a disponibilidade dos recursos existentes; o pedagógico, implementando práticas educativas que promovam a cultura da cooperação e da solidariedade, a autogestão social, o trabalho emancipado e o consumo solidário; o metodológico, afirmando o desenvolvimento que se efetiva de baixo para cima, respeitando o poder local da sociedade civil em relação ao Estado; o gênero, desconstruindo a cultura patriarcal; o ritmo: considerando a velocidade do desenvolvimento, que deve ser adequada a não provocar impactos prejudiciais aos ecossistemas e à organização sociocultural das comunidades; o território: constituído como conjunto de relações que se realimentam, possibilitando a sinergia de uma integração que promove e aprimora o bem-viver de todos, superando a desintegração e a exclusão.
Rede Mobilizadores – O consumo é uma exigência para a reprodução de cada ser vivo. Com que práticas de consumo convivemos atualmente e no que elas diferem?
R.: Não há vida sem consumo. Todo organismo vivo, como os seres humanos, estão acoplados aos ecossistemas, dependendo de fluxos materiais que lhes permitem permanecer vivos. Somos parte do ecossistema. Nosso corpo faz parte da natureza. Os ciclos de nossos corpos estão integrados nos ciclos dos ecossistemas. Nossa corporeidade vivente depende dos ciclos da natureza e de como nos acoplamos a eles, de como consumimos as matérias requeridas à preservação de nossas vidas. Outra parte do que consumimos, entretanto, não é servida diretamente pela natureza, mas depende do trabalho humano que gera bens e serviços. Esses meios econômicos gerados pelo trabalho não possuem valor econômico em si mesmos – pois o valor econômico lhes é atribuído socialmente.
Há muitas formas de intercâmbio social de meios econômicos (bens e serviços) em que as pessoas não quantificam o valor econômico dos meios oferecidos e recebidos. Há formas de realizarem-se a distribuição e o consumo solidário de meios econômicos onde não operam qualquer forma de registro de valor, mas o reforço dos laços de pertencimento a uma comunidade no dar e receber. Por outra parte há também formas de acesso não-monetário ao consumo de bens e serviços que são valorados economicamente. Conforme o IBGE, 12,8% do consumo total das famílias no Brasil referem-se a rendimentos econômicos não-monetários, isto é, referem-se ao consumo de bem ou serviço que “na última transação, não tenha passado pelo mercado.”[9] No caso da população rural isso chega a quase 20%. Quando usamos softwares livres ou produtos, licenciados sob a creative commons, nos valemos de meios econômicos que satisfazem nossas necessidades pelos quais nada pagamos.
Entretanto, sejam obtidos de forma monetária ou não-monetária, gerados pela natureza ou pelo trabalho humano, os bens e serviços podem ser consumidos de diferentes formas. Podemos distinguir quatro práticas de consumo: o consumo alienado, consumo forçoso (compulsório), consumo para o bem-viver e o consumo solidário. O consumo alienado é quando as pessoas não têm consciência dos impactos do seu consumo e se deixam levar pelas propagandas, buscando nos produtos a satisfação de desejos e fantasias associadas a situações ou identidades que gostariam de viver ou ser. Ao comprar os produtos, entretanto, as pessoas asseguram a realização do lucro, viabilizando a completude do giro da produção capitalista. O consumo forçoso (compulsório), por sua vez, é aquele que a pessoa é obrigada a realizar, pois todos somos obrigados a consumir para satisfazer nossas necessidades. Quem é pobre e tem pouco dinheiro para fazer a compra do mês, por exemplo, não se preocupa com as marcas dos produtos, mas sim em conseguir atravessar o mês com a compra que irá levar para casa, mesmo que sejam produtos de baixa qualidade. Já o consumo para o bem-viver, como vimos, é um consumo consciente que ocorre quando as pessoas optam pelos produtos e serviços que atendam ao seu bem-viver, preocupando-se igualmente com os impactos ecológicos e sociais de seu consumo. Por fim, o consumo solidário é quando consumimos produtos e serviços da economia solidária, buscando promover sustentavelmente o nosso bem-viver e o bem-viver dos produtores e de suas comunidades.
Cabe salientar ainda que além do consumo das famílias é importante levar em conta o consumo dos governos e o consumo dos empreendimentos. As compras públicas e as compras de insumos e materiais diretos pelos empreendimentos podem igualmente favorecer o bem-viver das comunidades quando se dirigem aos produtos e serviços oferecidos pelos empreendimentos da economia solidária.
Rede Mobilizadores – Quais as principais implicações do consumo alienante para o planeta e para os seres humanos?
R.: Quando as pessoas praticam o consumo alienante elas buscam, com o consumo, satisfazer desejos e anseios ou aplacar temores que são agenciados pela propaganda, que é a arma do negócio para a venda da mercadoria, como diz o bordão capitalista. A publicidade lida com os desejos como um Demiurgo que cria a realidade a partir do design e dos signos do que deve ser vendido. Ela dá forma e objetivação ao desejo que se projeta na mercadoria como meio de sua realização. Esse consumo, entretanto, longe de satisfazer os desejos e aplacar os temores, cria uma lógica de lidar com as carências e angústias humanas, com a falta e a perda, o sucesso e o fracasso, que aprofunda a necessidade de comprar coisas, como se comprar coisas trouxesse algum sentido à vida, salvasse a existência humana do vazio, do sem-sentido. E quando as pessoas não conseguem comprar o que a propaganda agencia como se fosse o signo de sua realização humana e social, um sentimento de inferioridade e frustração torna essa pessoa infeliz – mecanismo bem analisado nos estudos sobre a psicopatologia do subdesenvolvimento.
E embora comprem em excesso não pelo que o produto acrescente ao seu bem-viver mas pelos desejos de felicidade e pelo temor de exclusão agenciados pelas propagandas, tal consumo permanece apenas como mais um degrau de uma escada infinita para representar a ascensão social e a atualidade de quem porta as marcas e mercadorias reconhecidas como signos de destaque social naquela estação. Mas, paradoxalmente, essas pessoas se sentem como se não valessem nada sem essas mercadorias. No fundo de sua autoestima, ao enxergar as pessoas pelo que elas possuem e não pelo que elas são, temem ser consideradas inferiores se não ostentarem um padrão de consumo que muitas vezes nem têm condições econômicas de realizar.
O impacto do consumo alienante nos ecossistemas é trágico. Uma parcela da sociedade vem acumulando e descartando mercadorias em ciclos cada vez mais curtos, pois o sistema produtivo vem encurtando a vida dos produtos para vender mais mercadorias e gerar mais lucros. Por outra parte isso vem exaurindo os recursos naturais e gerando volumes cada vez maiores de lixo. É importante destacar que a informação nas embalagens e em muitos produtos dizendo que eles ou seus componentes são recicláveis não significa que eles serão reciclados após o descarte ou que sejam frutos de processo de reciclagem. Em alguns casos, o custo para a reciclagem e o gasto de energia nesse processo a tornam economicamente e ecologicamente impraticável. É fundamental, portanto, que haja a redução do consumo desses produtos e que eles sejam substituídos por outros, feitos com materiais biodegradáveis, que possam ser reabsorvidos pela natureza sem danos ambientais e em curto prazo de tempo. E fundamental aumentar a vida útil dos produtos e apoiar o desenvolvimento de tecnologias de reciclagem que sejam amigáveis com os ecossistemas.
Rede Mobilizadores – O que é o consumo solidário? Que exemplos desse tipo de consumo temos no Brasil? O que seria preciso para multiplicar essas práticas?
R.: Esse conceito de consumo solidário é irmão-gêmeo do conceito de bem-viver. Eles nasceram juntos em 1998. Consumir para o bem-viver significa valer-se eticamente do que é necessário ou desejável para a realização da singularidade de cada qual, buscando igualmente promover as liberdades econômicas dos demais nas melhores condições possíveis. Quando buscamos promover a libertação econômica de todos e o equilíbrio dinâmico dos ecossistemas através do consumo, nós praticamos o consumo solidário, isto é, nos valemos, em nosso consumo, dos bens e serviços produzidos sob a lógica da economia solidária, que se realiza levando em conta a sustentabilidade econômica, ecológica e social nas suas atividades.
Quando consumimos bens e serviços oferecidos pelos empreendimentos econômicos solidários, uma parte do preço justo que pagamos refere-se a um excedente de valor econômico a ser reinvestido. Nas redes de economia solidária esses excedentes podem alimentar fundos de desenvolvimento econômico ou bancos comunitários, sustentando a criação de novos empreendimentos, diversificando ofertas e remontando cadeias produtivas de modo a assegurar um desenvolvimento endógeno e sustentado nos diferentes territórios, com vistas a gerar postos de trabalho, distribuir renda e garantir o bem-viver dos consumidores e de suas comunidades.
Rede Mobilizadores – O bem-viver pode ser visto como uma plataforma política para a construção de alternativas ao modelo de desenvolvimento atual? De que forma?
R.: Sim, ele pode orientar a elaboração de uma plataforma política para outro desenvolvimento. No Equador, o conceito de Bem-Viver foi integrado na Constituição nacional. A sétima parte da Constituição trata do Regime do Bem-Viver. Ela possui dois capítulos: inclusão e equidade e biodiversidade e recursos naturais. No primeiro, estão incluídos os temas da educação, saúde, segurança social, habitação, cultura, comunicação, informação, tempo livre, ciência e tecnologia e outros. No segundo capítulo temos: natureza e ambiente, biodiversidade, patrimônio cultural e ecossistemas, recursos naturais, solo, água, biosfera, ecologia urbana e energias alternativas. Afirma-se que “o Estado garantirá um modelo sustentável de desenvolvimento, ambientalmente equilibrado e respeitoso da diversidade cultural, que conserve a biodiversidade e a capacidade de regeneração natural dos ecossistemas, e assegure a satisfação das necessidades das gerações presentes e futuras.”[10]
A constituição equatoriana reconhece as formas de organização econômica pública, privada, mista, popular e solidária. A economia popular e solidária inclui os setores cooperativistas, associativos e comunitários. O artigo 228 afirma que nas compras públicas “serão priorizados os produtos e serviços nacionais, particularmente os provenientes da economia popular e solidária, e das micro, pequenas e médias unidades produtivas”.
Pode-se ver nessa constituição um avanço importante na perspectiva de conceber a política com vistas ao bem-viver, mas isso não basta. É necessário construir uma plataforma política em que o bem-viver e a economia solidária, como forma material de sua sustentação, estejam transversalmente presentes em todas as ações.
Uma plataforma política para o bem-viver necessita tratar das quatro condições da liberdade de maneira concreta. Pois sem assegurar as condições materiais, políticas, educativo-informativas e éticas para a realização da dignidade humana de cada qual, não há a expansão do bem-viver. Isso implica igualmente a proteção do equilíbrio dinâmico dos ecossistemas, a proteção da biodiversidade e da diversidade cultural.
A expansão do bem-viver, entretanto, requer também uma mudança cultural importante no conjunto das relações sociais e não apenas da política pública. Pois ele está centrado no modo como as pessoas se relacionam entre si e com os ecossistemas. Ele possui um importante componente ético. Sem a solidariedade entre as pessoas não há bem-viver. A essência de uma festa está na alegria de as pessoas estarem juntas. Viverem a proximidade do encontro. Os suportes materiais, o que é servido, usado e consumido, é importante. Mas sem o acolhimento e respeito entre as pessoas, sem o desejo de que cada outro esteja bem integrado e acolhido, não há festa. Pode haver uma reunião social, em que cada qual estará ali para exibir o que possui, a começar pelos carros e vestidos, jóias e outros adereços de prestígio. Mas não haverá festa e, sim, um jogo de representações simbólicas. A solidariedade brota como compaixão frente aos sofrimentos humanos, como simpatia frente às felicidades alheias, compartilhando o desejo de realização ética da liberdade do outro.
Por outra parte, cabe assegurar um Estado democratizado, em que as leis reafirmem no plano do direito os mesmos valores éticos afirmados na esfera da sociedade civil para a realização do bem-viver. O Estado deve ter o tamanho necessário para garantir os direitos e assegurar os serviços públicos requeridos ao bem-viver de todos.
Rede Mobilizadores – De forma geral, quais os pré-requisitos para que o bem-viver seja posto em prática? Você acredita que seja algo possível de atingirmos a médio/longo prazos em nosso país?
R.: Em geral, o bem-viver das pessoas sempre está em alguma medida realizado e em alguma medida negado, pois a liberdade humana jamais é totalmente aniquilada e jamais é plenamente realizada em relação às suas potencialidades. Mas em algumas situações o bem-viver está totalmente aniquilado. A violência sofrida por crianças, mulheres e anciãos, totalmente desprotegidos e violados completamente em sua dignidade humana é a negação total do bem-viver. A indiferença de quem o sabe e nada faz também o é. A expansão do bem-viver exige uma transformação profunda de condutas pessoais e sociais, bem como uma mudança profunda na economia global e na atuação dos Estados. Podem-se construir indicadores objetivos que permitam avaliar em que medida as mediações materiais, políticas, educativas, informativas e éticas estão universalmente asseguradas nas melhores condições possíveis ao conjunto dos cidadãos e cidadãs. E com base nisso podem-se projetar soluções de mudança que, no limite, tenderão a ser estruturais para que se possa garantir as liberdades públicas e privadas de todos.
De fato, o mundo todo está passando por uma revolução. O que descrevi na Revolução das Redes, há treze anos, vem acontecendo. As redes colaborativas em âmbitos culturais, políticos e econômicos estão se organizando em escala global, e a economia solidária está se propagando e transformando interculturalmente. Cadeias produtivas estão sendo remontadas, e os processos de disputa hegemônica em torno de projetos democráticos e populares avançam por sobre os Estados. O capitalismo tenta recuperar a economia solidária dentro de seus fluxos de acumulação. E, em alguns lugares, onde a economia solidária não se organiza em redes colaborativas, ela está sucumbindo nos marcos de uma economia social de mercado ou fortemente dependente de ações de governo para se desenvolver. Por outra parte, onde as redes têm se fortalecido, a economia solidária tem conseguido reorganizar colaborativamente fluxos de produtos e serviços e fluxos de valor econômico. Ela vem desenvolvendo igualmente sistemas não-monetários de intercâmbio de bens e serviços, que têm permitido liberar recursos monetários para investimentos colaborativos, potencializando o desenvolvimento econômico sustentável, a difusão do consumo solidário e a remontagem das cadeias produtivas. Tudo ainda em escala muito pequena.
A primeira etapa dessa revolução, na esfera cultural, avançou bastante, com a circulação continuada de fluxos de informação em redes colaborativas e a expansão do diálogo intercultural sobre as práticas dos diferentes atores coletivos que buscam a construção de alternativas. Exemplo disso foi o surgimento do Fórum Social Mundial que potencializou a articulação de inúmeras redes, desencadeando ações conjuntas que se realimentam globalmente em processos de comunicação descentralizados e distribuídos. Alguns conceitos-chave do ponto de vista econômico como bem-viver, redes colaborativas, economia solidária, remontagem de cadeias produtivas, consumo solidário e sustentabilidade estão se difundindo pouco a pouco e sendo recriados na base de estratégias articuláveis entre si. Mas falta ainda um amadurecimento do conceito de libertação no seio dessas redes, para evitar que suas ações sejam recapturadas na espira hegemônica de dominação do capitalismo.
A segunda etapa, na esfera política, vem avançando de forma dramática e trágica. No caso da América Latina, houve uma onda de ascensão de governos populares que, infelizmente, até agora, pouco fizeram no sentido de consolidar a economia solidária, autogestionária e sustentável como base de um novo modelo de desenvolvimento – embora conceitos relacionados a essa compreensão estejam cada vez mais presentes no discurso desses governos populares. No caso dos países árabes, a sua primavera, com o sangue derramado de tanta gente cheia de esperança, tende a resultar em algumas mudanças políticas e quase nenhuma real transformação econômica ou social. Pois se não forem reorganizados solidariamente os fluxos de consumo, financiamento e produção, se não forem remontadas de maneira sustentável as cadeias produtivas, o que se conseguirá ao final de tanto sacrifício será manter a subalternidade do trabalho em relação ao capital e à dependência desses países frente aos fluxos econômicos globais; será manter formas de acumulação de riquezas e de poder que negam a expansão da realização do bem-viver. A liberdade democrática é uma das condições do bem-viver, e a resistência à tirania brota do mais profundo anseio por libertação. Mas sem uma estratégia de como articular a resistência à tirania com a libertação econômica, não se conseguirá avançar na construção do bem-viver com a derrubada dos governos autoritários.
A terceira etapa dessa revolução, na esfera econômica, já está em marcha, localizadamente, mas ainda não está lançada em escala global. As redes econômicas solidárias ainda são muito reduzidas e frágeis. O faturamento dos 22 mil empreendimentos de economia solidária mapeados no Brasil, por exemplo, é de aproximadamente R$ 8 bilhões por ano. Mas eles não têm um fundo comum de investimento, nem uma estratégia comum para atuar colaborativamente em rede que lhes permitam fortalecer-se reciprocamente na remontagem solidária das cadeias produtivas em que atuam. Cerca de 40% deles estão integrados em redes e fóruns, mas muito mais para debater políticas do que para agir economicamente em rede. Muitas das lideranças de redes continentais e intercontinentais no campo da economia social e solidária estão mais preocupadas, atualmente, em expandir ações comerciais de mercado e incrementar as vendas dos empreendimentos nos moldes convencionais do que em organizar redes colaborativas de economia solidária, capazes de consolidar em escala global uma alternativa sistêmica ao capitalismo, endereçada aos desempregados, empobrecidos e aos que não mais desejam alimentar com seu trabalho e consumo a concentração de riquezas e degradação dos ecossistemas.
Nas próximas décadas a convergência das tecnologias na produção de aparelhos celulares de comunicação cada vez mais ágeis e baratos irá avançar na progressiva substituição das moedas em papel e dos cartões de crédito para a movimentação de valores, como já vem ocorrendo nas operações bancárias realizadas com telefones inteligentes, e permitirá igualmente realizar votações diretas em processos de autogestão em redes colaborativas com milhões de participantes atuando de maneira articulada. Sistemas eletrônicos que potencializam transações econômicas não-monetárias com registros contábeis de créditos e débitos já estão se difundindo em diferentes países, amparados legalmente. A incorporação dessas tecnologias e processos pelas redes de economia solidária permitirá consolidar estratégias de produção sob demanda, realizar operações monetárias ou não-monetárias conforme a conveniência, movimentando recursos de maneira coordenada e fortalecer o processo democrático de autogestão de redes.
Seguramente, nas próximas três ou quatro décadas, a economia solidária poderá estar colocada como uma alternativa sistêmica global na perspectiva de assegurar os meios materiais requeridos ao sustentável bem-viver de todos. Mas a realização de tal asseguramento dependerá igualmente das dimensões educativa, informativa, política e ética, também requeridas ao exercício das liberdades. Pois a expansão da economia solidária supõe um processo de organização social que implica a difusão de valores éticos e democráticos sem os quais ela não se realiza.
Eu acredito que o Brasil e os países latinoamericanos podem avançar no asseguramento do bem-viver de suas populações nas próximas décadas, mas isso não será feito nos marcos do neodesenvolvimentismo capitalista e nem da chamada economia verde ou da economia social. É preciso que os governos dos países dependentes entendam que eles não sairão da dependência em que estão dos fluxos de capitais internacionais aprofundando as relações de dependência econômica em relação a eles, como vem acontecendo. Pois sem a expansão da economia solidária, não há como consolidar a democracia na esfera econômica.
Rede Mobilizadores – Há países que já pautam seu planejamento e gestão estatal no bem-viver? Quais? Em linhas gerais, isto vem sendo posto em prática?
R.: Há países que têm feito um esforço por seguir caminhos diferentes em relação ao desenvolvimento convencional. Entre as diferentes perspectivas, algumas têm ganhado projeção internacional. Em 1972, surgiu no Butão, um pequeno país de 700 mil habitantes situado no Himalaia, o conceito de Felicidade Interna Bruta. Numa cultura marcada pelos valores budistas, esse modelo busca conectar o desenvolvimento espiritual e o desenvolvimento material, de modo a um reforçar o outro, com a manutenção dos valores culturais, a conservação do meio ambiente, a elevação da qualidade de vida das pessoas e o aperfeiçoamento da boa governança. Com o apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento na implementação dessa proposta naquele país, este conceito atraiu a atenção internacional. Ele pode ser desdobrado em nove aspectos, aqui resumidos: 1) bem-estar psicológico e espiritual, considerando o grau de satisfação das pessoas em relação a sua própria vida; 2) saúde, tendo em conta a eficiência das políticas públicas nesse setor e o cuidado do si pelas pessoas; 3) uso equilibrado do tempo, considerando o lazer, o convívio com a família e amigos, tempo gasto com trânsito, trabalho e educação; 4) vitalidade comunitária, tendo em conta a interação com a comunidade, confiança, sensação de pertencimento, afetuosidade, segurança e ação voluntária; 5) educação, considerando atividades formais e informais, participação na educação dos filhos, educação ambiental; 6) diversidade cultural, referida à promoção de tradições locais, participação em atividades culturais, desenvolvimento artístico bem como a processos negativos de discriminação religiosa, racial ou sexual; 7) meio ambiente, avaliando a qualidade da água, ar, solo e biodiversidade, o acesso a áreas verdes, serviços de coleta de lixo e outros; 8) boa governança, considerando a avaliação da população em relação ao governo, mídia, judiciário, sistema eleitoral e segurança pública, com base em critérios de responsabilidade, honestidade e transparência; bem como o envolvimento das pessoas nas decisões e atividades políticas; 9) padrão de vida, considerando o rendimento individual e familiar, a situação financeira e o grau de endividamento das pessoas, a qualidade da sua moradia, entre outros aspectos.
Entretanto, é preciso ter cuidado para não confundir bem-viver com felicidade interna bruta. A questão não é apenas o que se pretende realizar e como as pessoas se sentem, mas como se realizam tais objetivos e o que faz as pessoas se sentirem assim. A boa governança inscrita no FIB, por exemplo, se refere à esfera política, mas até onde sei não trata da democratização da esfera econômica. A realização da democracia na esfera econômica, assegurando aos trabalhadores igual poder de decisão sobre o empreendimento autogestionado, é um dos indicadores que não aparece no FIB. Mas esse controle democrático dos empreendimentos pelos trabalhadores e suas comunidades é um dos aspectos da economia solidária para a promoção do bem-viver dos próprios trabalhadores.
Assim, o bem-viver de cada qual é distinto. E as mediações requeridas ao bem-viver de uma pessoa serão diferentes em vários aspectos das mediações requeridas ao bem-viver das outras pessoas. Especialmente em se tratando de pessoas que vivem em culturas diferentes. Daí a importância de compreender o bem-viver como um modo de realização das liberdades públicas e privadas para o qual tanto deve concorrer a colaboração solidária entre as pessoas e os povos, quanto a ação do Estado nos uso de seus aparatos no asseguramento do exercício ético dessas liberdades.
Entrevista concedia â: Renata Olivieri
Editada por: Eliane Araujo
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[1] MANCE, Euclides André. “Realidade Virtual – A conversibilidade dos Signos em Capital e Poder Político”. Revista Lumen. 2(4):75-135 jun 1996. Faculdades Associadas Ipiranga, São Paulo, SP, Brasil, 1996
[3] FAO. Poverty in Europa. Acessível em: http://www.fao.org/docs/eims/upload/263500/Poverty%20in%20Europe1.pdf. Disponível em: 31/05/2012
[4] USDA. “Household Food Security in the United States in 2010” in: Economic Research Report No. (ERR-125) 37 pp, September 2011. Acessivel em: http://www.ers.usda.gov/Publications/err125/ . Disponível em: 31/05/2012. Vejase também, Hunger in America: 2012 United States Hunger and Poverty Facts . Acessível em http://www.worldhunger.org/articles/Learn/us_hunger_facts.htm Disponível em: 31/05/2012
[5] https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/rankorder/2129rank.html
[6] EUROSTAT. Unemployment statistics. Acessível em: http://epp.eurostat.ec.europa.eu/statistics_explained/index.php/Unemployment_statistics . Disponível em:
31/05/2012
[7] MANCE, Euclides André. "A Revolução das Redes". CEPAT-Informa Ano 4. N.46, p. 10-19 dez 1998
[8] WEINPOLTER, Irene. Das Potential von Aus- und Weiterbildung in der Solidarökonomie für die Lokalentwicklung in Brasilien. Tese de Doutorado. WU Vienna University of Economics and Business, 2009. Disponível em: http://epub.wu.ac.at/1931/1/document.pdf
[9] http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/pof/2002_2003perfil/notatecnica.pdf
[10] http://www.funcionjudicial-manabi.gob.ec/manabi/index.php/constitucion-de-la-republica/60