As inundações urbanas decorrentes de chuvas intensas são consideradas o tipo mais frequente de desastre no território brasileiro. Elas acarretam perdas humanas, materiais, afetam psicologicamente as pessoas, e a região atingida pode levar anos até que consiga se recuperar.
E o problema é muito antigo. Em janeiro de 1915, Lima Barreto já escrevia sobre os efeitos causados pelos temporais no Rio de Janeiro e afirmava que “nos preocupamos muito com os aspectos externos, com as fachadas, e não com o que há de essencial nos problemas da nossa vida urbana, econômica, financeira e social.”
Quase um século depois, o cenário não mudou. Apenas em decorrência das chuvas de dezembro de 2013 e janeiro de 2014, que atingiram Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo e São Paulo, tivemos um saldo de pelo menos 50 mortos e cerca de 55 mil desabrigados. Apesar da dimensão dos danos, o governo investe muito mais no socorro às vítimas do que em medidas de prevenção.
Nesta entrevista, Tião Santos, coordenador de projetos e da área de meio ambiente do Viva Rio, fala sobre esse problema recorrente nas nossas cidades e sobre as medidas necessárias para melhor preparar os municípios brasileiros para esses eventos climáticos inevitáveis.
Rede Mobilizadores – Há quase cem anos, Lima Barreto escrevia sobre os problemas causados pelas chuvas no Rio de Janeiro. Por que ainda hoje continuamos convivendo com problemas semelhantes?
R.: Isso acontece porque não temos, no Brasil, uma cultura de prevenção séria. Costumamos deixar para resolver tudo depois que os eventos acontecem. Não pensamos no futuro. Além disso, temos o problema do tratamento político dado a essas questões. Os governantes pensam ações para o período de seu mandato, e elas não têm continuidade no governo seguinte. Isso sem contar as iniciativas governamentais que aumentam os riscos.
Um exemplo claro foi a tragédia na região serrana do Rio de Janeiro, em 2011, que é a maior do país [deixou 905 mortos, 191 desaparecidos e milhares de desabrigados]. Por vários anos, diversos prefeitos da região estimularam a construção de casas em áreas de risco, chegando a oferecer material de construção a moradores da Baixada Fluminense e os incentivando a se mudarem para a serra e ocuparem terrenos que, na maior parte das vezes, nem eram de propriedade municipal. Em geral, eram terrenos da União, muitos deles em áreas de preservação ambiental.
Precisamos urgentemente de um choque cultural, de uma política de Estado e não de governo – que muda a cada quatro anos – eficiente, de baixo custo, que efetivamente dê resultados.
Rede Mobilizadores – Apenas nas chuvas de dezembro de 2013 e janeiro de 2014 que atingiram Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo e São Paulo, tivemos um saldo de pelo menos 50 mortos e cerca de 55 mi desabrigados. Como evitarmos tantos danos?
R.: Além dos mortos e desabrigados, temos o trauma que esses eventos geram e que também precisam ser considerados. As crianças, especialmente, ficam muito traumatizadas. Muita coisa precisa ser considerada e o Estado ainda adota medidas muito tímidas. Não basta apenas identificar áreas de risco, colocar sirenes, treinar pessoas. Só isso é pouco.
Milhões de pessoas continuam vivendo em áreas de risco, e é preciso coragem para tirá-las dessas áreas. Fiquei um ano em Friburgo (região serrana do Rio de Janeiro), após as chuvas de 2011, e muitas pessoas não recebem o aluguel social prometido. Em Teresópolis (situado na mesma região), nenhuma casa foi entregue aos desabrigados. Os governantes têm de ter sensibilidade para oferecer alternativas dignas a essas pessoas. Muita gente volta para suas casas, em áreas de risco, porque não lhes é dada nenhuma outra opção.
É preciso cuidado também quando se pensa em realojar as pessoas. Não se pode tirar moradores da área rural, por exemplo, que têm uma relação sentimental, familiar com a terra, e colocá-los num condomínio de apartamentos. As pessoas também não podem ser obrigadas a ir para locais distantes de onde viviam.
Rede Mobilizadores – Quais as principais medidas de prevenção que deveriam ser adotadas para atenuar os impactos dos temporais e evitar mortes e pessoas desabrigadas, especialmente em favelas e periferias?
R.: É preciso investir em capacitação, especialmente dos profissionais que atendem moradores em áreas de risco, mais particularmente médicos e integrantes da Defesa Civil. Mas essas capacitações não podem acontecer apenas nos momentos de crise, têm de ser permanentes.
É preciso também ter equipes treinadas, que conheçam as localidades, saibam como chegar a determinados locais numa urgência, conheçam o perfil dos moradores de cada localidade, saibam onde vivem as pessoas que necessitam de atenção especial, como idosos, pessoas com deficiência. É necessário, ainda, preparar os hospitais para que possam melhor atuar nesses momentos, e ter um banco de sangue com reservas para situações de emergência.
Outro aspecto fundamental é oferecer tratamento psicológico. As pessoas diretamente atingidas por inundações, desmoronamentos, etc, enfrentam diversos dramas, as crianças ficam traumatizadas, mas a maior parte dos protocolos existentes não contempla esse atendimento.
Temos de capacitar também as pessoas que vivem nas áreas mais suscetíveis. Aos poucos, têm acontecido treinamentos promovidos pela Defesa Civil, porém muitas vezes não são oferecidos instrumentos adequados aos moradores para que possam atuar num momento de crise. O ideal é ter uma base da Defesa Civil em cada localidade e promover ações permanentes, planejadas.
Rede Mobilizadores – A percepção de risco varia muito em função das crenças, tradições e informações a que as pessoas têm acesso. Diante disso, como orientar os moradores de forma a que percebam o perigo que podem estar correndo? Que instrumentos devem ser utilizados?
R.: Muitas vezes, as pessoas agem mais com base em suas crenças religiosas, do que por aquilo que estão vendo, que está a sua frente. Elas acreditam na proteção divina, agem movidas por sua fé. Para modificar isso é preciso um trabalho permanente de divulgação de informações, de comunicação. Quanto mais e melhor informadas as pessoas estão, mais facilmente se consegue mudar padrões de comportamento de risco. Campanhas temporárias não são suficientes. É preciso ter um planejamento e desenvolver ações contínuas.
Rede Mobilizadores – O poder público (municipal, estadual e federal) tem sabido se comunicar de forma clara com a população nas iniciativas de prevenção e durante os momentos de catástrofe?
R.: Nós em geral nos comunicamos muito mal e com o poder público não é diferente. Muitas vezes, os governos acreditam que campanhas relâmpago vão resolver tudo, e não vão. Um exemplo de campanha bem sucedida no Brasil é a da Aids. Ela é eficiente porque se tornou transversal na área de saúde. Temos de atuar da mesma maneira, cotidianamente, em relação à prevenção de desastres.
Rede Mobilizadores – Quais políticas públicas deveriam ser adotadas com prioridade para preparar a população e os territórios para os momentos de fortes chuvas?
R.: Avançamos muito pouco no que se refere a políticas públicas, mas avançamos, e é preciso reconhecer. Tem havido esforços para treinar pessoas, e a oferta de alguns equipamentos como sirenes. O governo federal tem buscado tirar moradores de áreas de risco, como encostas e beira de rios, mas precisamos ir muito além.
A diferença entre as verbas disponibilizadas pelo governo federal e as efetivamente utilizadas pelos governos estaduais e municipais é muito grande. Os governos, especialmente dos municípios, não têm pessoal técnico capacitado para fazer projetos qualificados e se habilitarem a captar esses recursos. Em geral, estados e municípios não têm o mínimo preparo para enfrentar a burocracia. Há falta de experiência técnica, de experiência de gestão.
Rede Mobilizadores – O Gabinete de Crise do Viva Rio está funcionando?
R.: Nós temos uma equipe central no Rio de Janeiro, integrada por pessoas com experiência, capazes de atuar numa eventualidade, como os temporais intensos. Mas, a iniciativa ainda é incipiente, pois cada um dos integrantes acaba envolvido com questões do cotidiano e têm pouco tempo disponível. Em setembro de 2013, conseguimos fazer uma reunião com a equipe, mas ainda temos muito o que avançar.
Entrevista para o Eixo de Meio Ambiente, Clima e Vulnerabilidades
Concedida à: Eliane Araujo
Editada por: Sílvia Sousa