A proposta era fazer com que os projetos culturais fossem idealizados na própria comunidade, baseados em tradições locais e na sedimentação do saber cultural existente no próprio território. Assim nasceu o Programa Cultura Viva, que traz como ação principal os Pontos de Cultura – formulado a partir da ideia de compartilhamento e desenvolvimento de uma rede entre Estado e sociedade.
Idealizador do programa, Célio Turino, historiador e escritor, é também o maior entusiasta da iniciativa, que inverteu a lógica de que o estado determina o caminho dos recursos, fazendo com que a sociedade participe mais ativamente desse processo. Hoje, o país registra mais de três mil Pontos de Cultura, que descentralizam a ação cultural e tornam evidentes manifestações artísticas, antes consideradas apenas folclore.
De acordo com o historiador, o Ponto de Cultura não tem um modelo único, nem de instalações físicas, nem de programação ou atividade e o aspecto comum a todos é a transversalidade da cultura e a gestão compartilhada entre poder público e a sociedade civil. Confira a entrevista.
Rede Mobilizadores – O que são os Pontos de Cultura? Quando foram criados e com que proposta?
R.: O ponto de cultura nada mais é do que o apoio do Estado, através de editais de fomento, às iniciativas e manifestações culturais já existentes em determinada comunidade. O projeto foi criado dentro do Programa Cultura Viva*1, do Ministério da Cultura, no ano de 2004. A proposta era fazer com que os projetos culturais nascessem da própria comunidade, baseados em tradições locais e na sedimentação do saber cultural existente no próprio território.
Rede Mobilizadores – Como nasceu a ideia dos Pontos, como eles foram implantados inicialmente e que tipo de inovações proporcionaram?
R.: O convite para integrar a então Secretaria de Programas e Projetos Culturais do Ministério da Cultura, em 2003, na época sob a gestão Gilberto Gil, foi para coordenar um outro projeto que o governo federal pretendia lançar para a construção de centros culturais em regiões periféricas, chamado de Bases de Apoio à Cultura (BACs).
Reconhecendo as deficiências dessa iniciativa, que precisava de recursos muito altos e partia do pressuposto de que o Estado deve fazer as intervenções onde bem entender, eu propus subverter um pouco esta lógica – a do Estado apenas como provedor. Eu ainda não havia sido nomeado oficialmente, mas já em Brasília, do hotel onde estava, escrevi um novo projeto em que a proposta era dar meios para as manifestações culturais tomarem corpo, de baixo para cima. Depois de algum tempo trabalhando com cultura e já tendo passado por experiências similares, mas em menor escala, eu sabia onde estava pisando. Foi aí que nasceu o projeto Cultura Viva, que traz como ação principal os Pontos de Cultura.
Foi muito rápido. Em 40 dias já estávamos com o programa pronto, decreto instituindo e edital público na rua. Com o edital, a gente inverteu a situação. Normalmente, o Estado define previamente no seu planejamento o que deve ser feito – ele cria uma roupagem e tenta adequar o que deve ser feito, e isso em todo lugar do mundo. O que fizemos foi o contrário: definimos alguns parâmetros, um deles o valor que é passado para o ponto, que era, mais ou menos, R$ 5 mil por mês. E o grupo é que devia dizer qual a solução para o problema, se ele quer trabalhar com violinos ou com o resgate de algum idioma indígena. Eu tinha a confiança de que daria certo.
Tivemos um bom retorno no início. Recebemos cerca de 850 projetos em 2004 – era para selecionarmos apenas 100, mas como eram muito bons, chegamos a 260, e terminamos aquele ano com 72 conveniados. Em função dessa construção e desse retorno, o programa foi ganhando mais força e, em paralelo, aquela idéia da BAC foi perdendo força. Ficou acordado que esse era o caminho, e o Congresso Nacional, depois da aprovação do presidente Lula, fez uma emenda parlamentar de R$ 55 milhões para o programa, em 2005. Quando comecei, tinha apenas R$ 5 milhões.
Rede Mobilizadores – Quais são as atividades culturais que podem ser englobadas num Ponto de Cultura?
R.: Entendemos a cultura como tendo três dimensões: a simbólica, a do comportamento e a econômica. Cada cultura se manifesta de um jeito diferente e não existe muito um padrão. O que existe são conceitos e nos baseamos em Arquimedes, um matemático, para poder entender esse processo: “Dê-me uma alavanca e um ponto de apoio e levantarei o mundo”. É um conceito matemático, mas que se aplica a tudo e também à cultura. É o entendimento da cultura enquanto processo. Quem faz cultura é a sociedade, não o governo, mas cabe ao Estado garantir meios para que essa produção cultural seja feita de maneira diversa, autônoma e protagonista.
Rede Mobilizadores – Como funciona um Ponto e como são geridos os recursos para sua manutenção?
R.: O Ponto de Cultura não tem um modelo único, nem de instalações físicas, nem de programação ou atividade. Um aspecto comum a todos é a transversalidade da cultura e a gestão compartilhada entre poder público e sociedade civil.
Os projetos a serem selecionados devem partir de iniciativas culturais e funcionar como instrumentos de pulsão e articulação de ações já existentes nas comunidades, contribuindo para a inclusão social e a construção da cidadania, seja por meio da geração de emprego e renda ou do fortalecimento das identidades culturais. Em geral, os Pontos de Cultura selecionados recebem o valor de R$ 180 mil, distribuídos em três anos consecutivos. Por ano são R$ 60 mil e por mês, R$ 5 mil. Os recursos são geridos de acordo com a necessidade de cada projeto e podem ser utilizados para a compra de bens materiais e também para o pagamento de profissionais envolvidos.
Rede Mobilizadores – Quais as maiores dificuldades que os pontos de cultura enfrentam? Como podem ser superadas?
R.: O grande desafio é que essa proposta é inovadora e rompe com a lógica do Estado, que é concentrador e impositivo por excelência. Os pontos de cultura pressupõem o descontrole, a desconcentração, o estabelecimento de uma relação entre Estado e sociedade em outras bases, com novos paradigmas. Por exemplo: do Estado que desconfia e controla para um Estado que confia. A confiança é uma relação de mão dupla. A sociedade participa. Muda em essência a democracia. Vivemos uma democracia que é transferidora de responsabilidades. O ponto de cultura exige muito da sociedade, que ela se aproprie dos meios de gestão do Estado, quando realiza um convênio, uma prestação de contas, esses mecanismos de acompanhamento. Mas no entendimento de prática cidadã, é um exercício necessário, que precisa ser colocado.
Outro ponto que merece destaque é o fato de o Programa Cultura Viva ser uma política de governo. Ele ganhou espaço na sociedade, ganhou representatividade, mas é preciso um amparo mais sólido, a partir de uma lei, por exemplo, que garanta esse conceito e princípios do programa. Esse é o grande desafio dos pontos de cultura.
Rede Mobilizadores – O que é o Cadastro Nacional dos Pontos de Cultura?
R.: No período de 2004 até 2011, o Programa Cultura Viva apoiou a implementação de 3.703 Pontos de Cultura, presentes em todos os estados do Brasil, alcançando cerca de mil municípios. São mais de oito milhões de pessoas participando desse processo. O cadastro nacional é uma tentativa de a sociedade civil fazer a articulação virtual entre os pontos de cultura. Está em tramitação no Congresso um projeto de lei, de autoria da deputada Jandira Feghali, que prevê a criação do Cadastro Nacional dos Pontos de Cultura. Outro ponto de destaque é que com a aprovação da lei, o programa Cultura Viva não correrá o risco de ser descontinuado, já que deixará de ser um programa de governo para se tornar uma política de Estado.
Rede Mobilizadores – Como os pontos de cultura ajudam a fortalecer a cultura regional?
R.: A cultura é a base da construção da identidade de um povo. Estimular as manifestações culturais presentes na comunidade é estabelecer um vínculo que fortalece a percepção do próprio meio e gera protagonismos.
Rede Mobilizadores – O que é Economia Criativa e como a cultura se relaciona com ela?
R.: A economia criativa para mim está para a cultura, assim como a economia verde está para o meio ambiente. Sou totalmente contrário a este termo, pois ele traz consigo a ideia de que tudo tem um valor e pode ser precificado e comercializado. É uma forma de apropriação do que é intangível. Sou a favor da economia solidária, criativa e colaborativa.
Rede Mobilizadores – O que fazer para despertar na sociedade a importância de se fortalecer as expressões culturais locais e manifestações artísticas regionais em detrimento da cultura de massa?
R: Estamos vivendo uma época de vulgarização e banalização da vida e a cultura que é valorizada hoje traz consigo esses reflexos. Existe uma mediocrização do padrão cultural que prioriza a escala e o lucro. É uma cultura de celebridades instantâneas, de músicas sem qualidade que fazem muito sucesso hoje, e amanhã ninguém mais se lembra. Acho que o caminho é mesmo valorizar e fortalecer as iniciativas locais.
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*1 – O Programa Cultura Viva foi criado e regulamentado por meio das Portarias nº 156, de 06 de julho de 2004 e n° 82, de 18 de maio de 2005, do Ministério da Cultura. Ele é executado pela Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural (SCDC/MinC).
Esse Programa surgiu para fortalecer o protagonismo cultural na sociedade brasileira, valorizando as iniciativas culturais de grupos e comunidades, ampliando o acesso aos meios de produção, circulação e fruição de bens e serviços culturais, tendo como base os Pontos e Pontões de Cultura.
Entrevista para o Eixo Participação, Direitos e Cidadania
Concedida à: Flávia Machado
Editada por: Eliane Araujo
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