Cerca de um mês antes do Dia Internacional das Mulheres, comemorado em 8 de março, a legalização e descriminalização do aborto voltou a suscitar debates. No Brasil, o aborto é legal quando a gravidez é decorrente de estupro, se há risco de morte para a mãe ou se o feto é anencéfalo (não possui cérebro). Nestas condições, a mulher pode exigir os seus direitos e ser atendida pelo Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, mesmo amparada pela lei, muitas mulheres têm dificuldades de serem atendidas, e por vezes são maltratadas pelos profissionais de saúde.
Fora das condições previstas em lei, o aborto é considerado crime, com pena que varia de 1 a 4 anos de cadeia. Na avaliação do juiz criminal José Henrique Torres, integrante de uma Comissão Especial de Juristas que luta pela mudança no código penal brasileiro, “a criminalização do aborto não tem nada a ver com a proteção do feto. Ela é, na verdade, o controle da sexualidade feminina”.
Em 56 países o aborto é permitido sem nenhuma restrição e sua legalidade varia de acordo com o tempo gestacional. Na França ele é legal desde 1974. O Uruguai descriminalizou o aborto em outubro de 2012, permitindo à mulher interromper a gravidez até a 12ª semana. Em Cuba, desde 1965, a prática é legal até a 10ª semana de gestação. Na Suécia, pode-se optar pela interrupção até a 18ª semana. No Brasil, o Conselho Federal de Medicina defende a legalização até a 12ª semana.
A proibição legal no Brasil não faz com que os procedimentos diminuam, e muitas mulheres têm feito abortos inseguros em clínicas clandestinas, ou têm se utilizado métodos caseiros ou medicamentos proibidos. Para a Organização Mundial de Saúde, o aborto inseguro acontece quando a interrupção da gravidez é praticada por um indivíduo sem prática, habilidade e conhecimentos necessários, ou em ambiente sem condições de higiene.
O aborto inseguro tem uma forte associação com a morte de mulheres – são quase 70 mil no mundo, todos os anos. Desse total, 95% acontecem em países em desenvolvimento, a maioria com leis restritivas ao aborto. As maiores vítimas nesses casos são mulheres pobres, negras, que residem nas periferias e já são socialmente discriminadas.
Estima-se que cerca de um milhão de abortos inseguros são realizados anualmente no país, dos quais cerca de 250 mil resultam em complicações, levando o governo a um gasto de, no mínimo, R$ 142 milhões em internações e procedimentos de curetagem.
Segundo a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), realizada em 2010 pelo Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), ao final da vida reprodutiva, uma em cada cinco mulheres já fez ao menos um aborto. O levantamento revela ainda que, a cada dois dias, morre uma mulher vítima de aborto ilegal e que a maioria das mulheres que abortam no país tem de 25 a 39 anos, é casada, tem filhos e é cristã.
O ginecologista Jefferson Drezett, que há mais de 10 anos coordena um serviço de abortamento legal no país, afirma que “os recursos que gastamos para tratar as graves complicações do aborto clandestino são muito maiores que os recursos de que precisaríamos para atender as mulheres dentro de um ambiente seguro e minimamente ético e humanizado”.
Segundo Drezett o aborto é uma questão de saúde pública: “a gente não classifica um problema como sendo de saúde pública se ele não tiver ao menos dois indicadores: primeiro não pode ser algo que aconteça de forma esporádica, tem de acontecer em quantidades que sirvam de alerta. E precisa causar impacto para saúde da população. Nós temos esses dois critérios preenchidos na questão do aborto no Brasil”, explica.
A despeito do número de vítimas, o debate sobre aborto no país ainda tem se prendido a questões morais, ignorando a relação de causa e efeito entre a ilegalidade do aborto, os altos índices de procedimentos inseguros, e as altas taxas de morbidade e mortalidade materna.
E não há perspectivas de mudanças, pelo contrário. No Congresso Nacional há diversas proposições legislativas com a intenção de criminalizar qualquer tipo de aborto, e algumas delas sugerem retrocessos graves à legislação em curso – como transformar a interrupção da gestação em crime hediondo; pagamento de pensão pelo Estado para crianças concebidas por meio de violência sexual, caso o estuprador não possa arcar com ela ou não seja identificado (a chamada bolsa-estupro); acabar com a distribuição da pílula do dia seguinte.
A cientista política Telia Negrão afirma que “o Estado mantém forte controle sobre o corpo das mulheres na medida em que, através das leis e das políticas públicas, determina o grau de possibilidade de as mulheres tomarem as próprias decisões”. Ela lembra que, no Brasil, as mulheres não têm tido o direito de decidir sobre seu corpo.
Na avaliação da ex-ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, Nilcéa Freire, “a partir da I e da II Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres, o tratamento do tema ganhou novos contornos. A aprovação da resolução que demandava ao governo brasileiro iniciativas que viessem a rever, no sentido descriminalizante, a legislação brasileira, inseriu a questão do aborto no campo de discussão das políticas públicas, mais especificamente, no âmbito da saúde pública”.
Em novembro de 2014, a revista Tpm lançou a campanha #precisamos falar sobre aborto, para estimular o debate sobre o tema, reacendendo as discussões nas redes sociais. Por se tratar de uma questão de direitos reprodutivos e de saúde pública, o aborto é um tema atual e urgente que deve envolver toda a sociedade, para além de julgamentos morais.
Texto: Eliane Araujo
Fontes: Agência Brasil; Agência Pública; IHU Online; Marcha Mundial das Mulheres; Revista TPM.