Uma foto pregada em uma das paredes do Museu da Maré, com um rosto de uma mulher negra, nos leva a uma história nascida na favela, mais especificamente no Morro do Timbau, nos anos 1960. A senhora da foto, Orosina Vieira, migrou sozinha da localidade de Desemborco, Ubá, Minas Gerais, e se tornou a primeira moradora da Maré. Viveu até os 109 anos de idade e construiu com as próprias mãos uma casa de madeira, o primeiro ponto de encontro do que mais tarde viria a ser o conjunto de favelas da Maré. À porta esperavam mães, avós, com suas crianças nos braços em busca de ajuda. No local, não havia hospitais ou postos de saúde, remédio era coisa de difícil acesso. O que havia ali eram outras formas de cura. Orosina era rezadeira (veja aqui o depoimento dela), curava mal-estar e outros problemas, principalmente das crianças, que saiam da casa dela bentas e com dicas de curas caseiras. A mineira se tornou referência na comunidade, que crescia com a chegada de pessoas de vários estados em busca de trabalho no Rio de Janeiro, inclusive nas obras de construção da Avenida Brasil.
Onde a aplicação da lei não existia, e o Estado se fazia ausente, ela resolvia conflitos entre famílias, vizinhos e até casais, como conta a sobrinha-neta de Orosina, Vera Carvalho, hoje funcionária do Museu. “Ela resolvia até briga de casal, era como um xerife da comunidade. Esse tipo de história é mesmo do passado da Maré, porque até mesmo o espiritismo está desaparecendo. Faz parte da memória mesmo da comunidade e fico triste de pensar que ela está ameaçada. As pessoas de fora não sabem a importância que o Museu tem para os moradores.”
Vera se refere à situação que tem deixado moradores da Maré sobressaltados, desde que os donos do terreno e da casa onde o museu foi alojado informaram que vão querer de volta a edificação e a área do entorno. A concessão da casa foi feita por um contrato de comodato. “O grupo Libra (proprietário do terreno) não tem mostrado qualquer sensibilidade quanto à manutenção do museu. O grupo tem todo um discurso de responsabilidade social, é um dos principais financiadores da ONG Rio Como Vamos, mas está nos pressionando a sair do museu”, desabafa Claudia Rose Ribeiro, uma das fundadoras do Museu da Maré, da ONG Ceasm.
Os colaboradores do Museu acreditavam que o contrato seria renovado automaticamente. Claudia Rose conta que tem tentado, sem sucesso, contato com a Libra. E isso gera grande expectativa e estresse. Pudera. O Museu da Maré reconstitui, de forma bem organizada e lúdica, a história da ocupação da Maré. Ali, se veem peças que dão ensejo a uma viagem no tempo. Panelas, redes, imagens de santos, pentes usados pelas mulheres… Os objetos são uma espécie de testemunho sobre como a Maré foi crescendo e hoje, com mais de 130 mil habitantes (segundo Censo do IBGE de 2010), é uma cidade dentro da capital. O museu traz o espírito desse território com temas que variam do carnaval até os casamentos. “O museu tem vários tempos da maré. Retrata as primeiras casas no Morro do Timbau, expõe o resultado direto do então presidente da República João Figureiredo, que resultou na construção de conjuntos habitacionais; um deles, não por acaso, se chama Vila do João. A ocupação foi ganhando nomes de diferentes localidades, como o citado Timbau, Baixa do Sapateiro e Nova Holanda.”
O Canal Ibase também tentou, sem sucesso, contato com a Libra. Professor de Direito Urbanístico do Ippur, Alex Magalhaes analisou o caso a pedido do Museu da Maré. Segundo ele, o contrato de comodato, como determina o código civil, só dá o direito de quem emprestou gratuitamente o imóvel de retomá-lo, quando quem recebeu e empréstimo tenha terminado a atividade acordada. “Como o museu está em franca atividade, não há como interrompê-la; só se o museu deixar de existir”, disse Magalhães.
Enquanto isso, se no Rio de Janeiro falta reconhecimento, o Museu da Maré ganha status de referência internacional. A convite do British Council, outro diretor do Museu, Antônio Vieira, o Carlinhos, participou na semana passada da conferência Museums Change Lives (Museus Mudam Vidas), em Cardiff, País de Gales. A edição deste ano da conferência, que é realizada pela Associação de Museus, teve o tema voltado para a transformação social e apresentou casos e experiências relacionadas ao impacto social dos museus e seu engajamento comunitário. Lucimara Letelier, Diretora Adjunta de Artes do British Council, explica o porquê da escolha do museu: “O Museu da Maré fez parte dos museus brasileiros selecionados para serem visitados por diretores de museus britânicos em 2013 e despertou interesse por sua atuação muito próxima da comunidade da maré com engajamento de líderes comunitários e população de diferentes idades e perfis no pensamento de curadoria. Este processo foi considerado inovador devido à linguagem utilizada e ao contexto de superação que a região na qual esta inserido pressupõe”, disse Letelier, em entrevista por email.
A representante do British Council explicou que há outras iniciativas no Reino Unido e na Europa nas quais os museus propõem um diálogo intenso com a comunidade de forma a dar autonomia e participação no processo curatorial do museu. Na prática, significa a inserção das comunidades em uma construção coletiva. Segundo ela, a escolha do Museu da Maré está justamente no fato de que o projeto não trata a comunidade como um programa social paralelo. A relação com os moradores está no cerne do pensamento e da administração da instituição.
O deputado estadual mais votado do Rio nas últimas eleições, Marcelo Freixo (Psol), afirmou, em um video no facebook, que se trata de especulação imobiliária, diante da valorização da Maré após a ocupação militar e da perspectiva da Unidade de Polícia Pacificadora ali. Além disso, está em jogo a função social da propriedade urbana e regulação pública do solo urbano. Movimentos sociais e urbanistas apontam que o modelo aplicado no Rio de Janeiro é o de uma cidade negócio, em detrimento do direito à cidade, que deveria ser assegurado a todos os cidadãos. O que se propõe, de forma a tornar o espaço mais igualitário, é a subordinação dos direitos individuais de uso da propriedade aos interesses e direitos coletivos, de forma a garantir o uso socialmente justo e ambientalmente equilibrado do espaço urbano.
“Os donos do terreno deviam fazer uma visita, para verem de perto quanta coisa acontece dentro do Museu da Maré. Tem aula de balé, dança de salão, roda de leitura… é para todas as idades. E é uma luta. Para reformar a casa de palafita que foi construída como exemplo das casas antigas da Maré, fizemos uma feijoada. Todo mundo ajudou e deu certo. Lá não é só um museu para olhar e ir embora”, conta Vera Carvalho, a sobrinha da dona Orosina.
No sábado, dia 18 de outubro, aconteceram uma série de atividades abertas a todos e todas, em apoio ao Museu. O texto de divulgação dá o tom do peso do museu para a comunidade: “No próximo sábado, dia 18, os mareenses irão ocupar ruas da favela para lutar contra o despejo do Museu da Maré – que já tem data marcada. Este é um Museu de referência internacional, o primeiro museu dentro de uma favela. Ele foi construído pelas mãos dos próprios favelados e faveladas daquele local que se transformou no maior conjunto de favelas do Rio de Janeiro. Cada objeto que está ali foi levado pelos próprios moradores e moradoras, cada tempo, cada foto, cada pedaço daquele espaço foi construído e contado pelos mereenses. Mareenses que vieram do nordeste, que vieram dos quilombos, que vieram de outras favelas que sofreram remoções. Estão ali a nossa música favelada, a nossa cultura, a nossa feira, a nossa brincadeira na rua, a nossa identidade, a nossa memória. Memória que está hoje ameaçada por causa da especulação imobiliária, que está ameaçada por causa da militarização. Será simbólico e muito triste perdermos este espaço de memória da identidade mareense para a militarização. Será um retrocesso da nossa luta. Mas continuaremos resistindo neste tal território que hoje quase não tem mais espaço para o próprio favelado e favelada sobreviver. Favela, Resiste!”
Fonte: Canal Ibase