A Prefeitura da cidade de Campinas, no estado de São Paulo, está discutindo a possibilidade de iniciar um projeto para orientar mulheres que tenham decidido interromper a gravidez. O objetivo do programa, que conta com a parceria da Unicamp e da organização Bem-Estar Familiar no Brasil (Bemfam) e já foi realizado com sucesso no Uruguai, é informar as mulheres sobre os métodos existentes e os riscos implicados ao fazer um aborto, incluindo o risco criminal.
O programa tem um componente preventivo forte, segundo seus coordenadores. ?A idéia não é incentivar o aborto, mas orientar mulheres para que optem pelo mais seguro, para que ela saiba exatamente os riscos existentes na conduta que ela está querendo adotar. O programa objetiva reduzir o número de abortos. Não vamos impedir a mulher de fazê-lo, mas podemos ajudar a prevenir para que ela não morra em conseqüência de sua decisão?, ressalta o médico ginecologista Anibal Faundes, professor titular de Obstetrícia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e Pesquisador sênior do Centro de Pesquisa em Saúde Reprodutiva de Campinas (Cemicamp).
A despeito da abordagem de redução de danos, o projeto gerou reações: o Ministério Público Estadual acaba de pedir à Delegacia Seccional de Campinas a instauração de um inquérito policial para apurar uma suposta apologia ao crime de aborto.
?Não é ilegal acolher uma mulher antes ou depois de um aborto, assim como não é ilegal dar informação correta sobre o assunto?, defende Faundes, que colabora, desde 2004, no Uruguai, com o programa ?Iniciativas sanitárias para redução do aborto em condições de risco?, no qual o projeto brasileiro é inspirado. ?Lá, um terço dos registros de morte materna têm sido devido a abortos provocados clandestinamente. A lei uruguaia é tão restritiva quanto a brasileira?, diz ele, lembrando que, de 2001 a 2003, 48% das mortes de mulheres no hospital universitário Pereira Rossell de Montevidéu foram devidas ao aborto.
Redução da mortalidade materna
Em um ano, o programa conseguiu reduzir o índice de mortes maternas por abortamento no Hospital Universitário Pereyra Rossel de 11 para duas. Inicialmente o número de consultas era pequeno: em 2004, foram 800. ?No ano seguinte alcançaram 1400 e agora, nos primeiros cinco meses de 2007, já ultrapassaram mil. A experiência foi tão bem sucedida que o Ministério da Saúde uruguaio emitiu decreto apoiando o projeto, que se tornou um programa oficial do órgão?, lembra Faundes, que, em 2005, lançou o livro ?O drama do aborto: em busca de um consenso? (Editora Komedi), em co-autoria com o médico José Barzelatto.
?Nosso objetivo é conquistar a mulher que deseja abortar para que volte e nos dê a oportunidade de prevenir uma nova gravidez não desejada e, portanto, um novo aborto. Tentamos mostrar que ela tem alternativas, que fazer um aborto clandestino é um risco à saúde, e explicamos os riscos de tomar misoprostol ou introduzir objetos no útero?, afirma o médico.
Segundo ele, tendo em vista a experiência uruguaia, 80% das mulheres que abortaram retornam ao Programa. ?Quando ela retorna após provocar o aborto damos a ela um anticoncepcional seguro de alta eficácia e a segurança que ela continuará a ser atendida. Além do aconselhamento, o acolhimento dá muito mais confiança à mulher numa situação dessas?.
No Brasil, o aconselhamento seria ofertado em 15 unidades públicas de saúde, todas em Campinas. A meta é atender 3 mil mulheres, num prazo de dez meses. Para o médico e professor do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ) Mário Monteiro, um projeto dessa natureza é importante no contexto atual porque ?os riscos do aborto inseguro são altos. Por terem medo de ser processadas por crime, milhares de mulheres acabam recorrendo ao abortamento de alto risco, com práticas inadequadas. É uma realidade para a qual não podemos fechar os olhos?, salienta Monteiro, que há um ano vem desenvolvendo o estudo ?Magnitude do aborto no Brasil: aspectos epidemiológicos e sócio-culturais?, em parceria com a médica Leila Adesse, diretora do IPAS no Brasil.
Apesar dos argumentos morais que envolvem a questão, o projeto tem sido defendido por uma maioria de especialistas. Para estes, a iniciativa é importante porque, se de um lado tem articulação com uma experiência bem-sucedida em um país cuja situação do aborto tem aspectos semelhantes ao Brasil, como o Uruguai, por outro é consistente com a política de redução de danos – tem o mesmo significado da política de HIV/Aids em relação aos usuários de drogas, por exemplo.
?Do ponto de vista de saúde pública a idéia é a mesma. Uma realidade criminalizada, mas que implica em risco à saúde. A abordagem da redução de danos é realista, significa reconhecer que a prática existe e que, independente da moral, é eticamente válido oferecer recursos às pessoas que lançam mão dessas práticas. O Cytotec é uma realidade que deve ser reconhecida como um produto de efeitos benéficos do ponto de vista da saúde pública para reduzir a morte por aborto. O método não elimina por completo o risco, mas reduz a mortalidade?, afirma a pesquisadora Sonia Correa, da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA).
A polêmica com o Ministério Público já toma as páginas dos principais jornais do país. O editorialista da Folha de São Paulo Helio Schwartsman afirmou, em recente artigo, ser ridículo o Ministério Público enquadrar a iniciativa da Bemfam como apologia ao crime. ?Como regra geral, não creio que possamos qualificar como crime o fornecimento de informações corretas a respeito do que quer que seja. Se há algum delito nesse campo, é muito mais provável que ele esteja em tentar escondê-las?, disse Schwartsman.
O juiz de Direito José Henrique Rodrigues Torres emitiu parecer favorável à iniciativa. ?Urge que seja implantado um programa preventivo de redução de riscos e danos do abortamento inseguro, de forma segura e lícita, para assegurar às mulheres o direito à assistência plena a sua saúde. Não podemos mais aceitar que entre nós persista essa situação dramática, que está acarretando tanto sofrimento e tantas mortes?, afirma Torres, membro suplente do conselho diretivo da Associação Juízes para a Democracia e membro titular do conselho executivo da Federação das Associações dos Juízes para a Democracia da América Latina.
Fonte: Centro Latino-americano em Sexualidade e Direitos Humanos (www.clam.org.br)