A partir de imagens em preto e branco, o cineasta José Padilha revela a grave insegurança alimentar de três famílias cearenses no documentário Garapa, que lançou, no final de maio, a campanha pela constitucionalização do direito à alimentação, encabeçada pelo Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Confira a entrevista dada por Padilha ao jornal Correio Braziliense e participe você também, assinando o abaixo-assinado da campanha no site do Consea.
Confira também as entrevistas concedidas por Gleyse Peitere Elisabetta Recine, ambas do Consea,ao Mobilizadores COEP sobre a importância da aprovação imediata da PEC Alimentação.Socialmente engajado
Ao conhecer a realidade da fome no Brasil, cineasta José Padilha diz ter se transformado como ser humano.
Se com Tropa de elite, José Padilha (que faturou o Urso de Ouro no Festival de Berlim) deu representatividade aos policiais ? “jornalistas já me falaram que, depois do filme, quando morre um policial, eles agora registram o nome do morto nas reportagens”, explica ?, com Garapa, o intuito é apresentar ao público elementos como fome e famintos. “Esse filme é importante para mim e, na divulgação, vou me deter ao tempo que ele precisa”, determinou. Calmo, dono de discurso coerente e de intrigante oratória, José Padilha reitera a admiração pelo Bolsa Família, “que faz a diferença entre comer açúcar por 15 dias ou pelo mês inteiro”, enumera a fila de projetos em andamento e reforça as “questões primitivas, do ponto de vista intelectual” suscitadas no debate em torno de Garapa.
Teve gente que considerou Garapa um voyeurismo social. Como você lida com limites éticos e com críticas?
Antiético é famílias viverem naquela situação. Antiético é ter criança comendo açúcar, com enormes problemas dentários, com desvantagens abissais, e não acontecer nada. Mostrar isso é antiético? De que maneira? Simplificando, é uma frase que significa que o cara rico não quer ver! Há duas críticas recorrentes que já li em milhões de publicações. Uma é: o cineasta da classe média alta lida com personagens frágeis, então a relação impede o filme de ser executado. É argumento que inviabiliza qualquer realização: que cara miserável terá condições de fazer um filme? Suspeito muito de quem faça essa crítica. É uma postura pró-alienação.
Qual o outro incômodo?
Fixar a impossibilidade de relação entre documentarista e documentado. Há meios de a relação se constituir: posso entregar dinheiro para ONGs que lutem contra a fome, posso dar o filme para as famílias representadas. Posso mostrar, com antecedência, para as famílias, como eu fiz, vendo se estava tudo certo. Quem levanta essas críticas, nem olha o que foi feito. Há ainda a idéia de que o diretor do filme vai ser bem-sucedido e as famílias vão continuar lá. É o seguinte: se o filme for visto, que é o objetivo, é inevitável que venha a sair na mídia, ou então, o único filme que satisfaz as condições dessa crítica é o que não é visto. De novo uma crítica pró-alienação, não é isso? “Não vamos saber o que está acontecendo, é melhor a gente não saber”.
Qual o teu posicionamento político e como você lida com a possibilidade da contradição de ter um documentário subsidiado por um Estado que tem a inoperância exposta no próprio filme?
Não acho que se ganhe maior compreensão de mundo pensando em direita ou esquerda. Se você é um pensador de esquerda, o seu herói está definido: é o proletariado, o excluído. Já, na direita, o heroísmo recai sobre o empreendedor. Pra falar a verdade, basicamente decidi fazer um filme sobre o que é passar fome. Daí, corri atrás para financiar o longa que eu faria e, em nenhum momento, deixei o fato de o financiamento, por incentivo fiscal, como em qualquer filme brasileiro, pautar o que eu falaria.
É possível manter distanciamento, diante de uma realidade tão dramática?
Te digo que eu era que nem o espectador que, inicialmente, ignora o que é lidar com o assunto. É impossível não existir envolvimento. Você conviver com essa realidade muda o jeito de pensar. É inevitável. Uma vez, brinquei com um amigo: “Deveria ter pacote turístico para os líderes mundiais”. O cara viria para o Brasil e, em vez de ir ao Pão de Açúcar, ia para a cidade cearense de Choró. O mundo tem cisão em gigante escala que não é vista no dia-a-dia. Quando você faz um documentário, fica muito tempo com pessoas que passam a não ser desconhecidas. Vendo, de perto, não há como não se emocionar. A gente criou uma relação: de vez em quando, mandamos alguém lá para ver como eles estão. Agora, a gente ajuda todo mês. Desde o princípio, sabia que as famílias filmadas seriam donas do filme. Ganhando um prêmio, ou rendendo bilheteria, o dinheiro irá para uma conta que será administrada por uma ONG que ajudará as famílias. Há assistentes sociais locais que compram gêneros, porque, se mandar dinheiro direto, pode não virar comida. Precisamos zelar pelas condições das crianças em desvantagem. Se sou uma criança que cresce sem comer, me desenvolvo física e cognitivamente menos do que as outras; a probabilidade de arrumar um emprego é menor e meu filho vai reproduzir o mesmo drama. Isso é universal: a fome se repete nas mesmas famílias. Sem um empurrão dificilmente haverá superação. Nesse sentido, acho que o Bolsa Família é um exemplo.
De onde vem a satisfação?
Quando se exige do Estado algo com mínima complexidade, há falha. E o Bolsa Família é simples: fazer chegar R$ 50 às mãos de uma família. Até é possível otimizá-lo, mas exigiria que o Estado ? no Brasil, incompetente por definição ? administrasse um programa complexo. Indicar o Bolsa Família como a primeira medida de transferência de renda no Brasil é equivocada. OBrasil é um país que institucionalizou a inflação e as altas taxas de juros por décadas, e a inflação nada mais é do que uma política de transferência de renda do pobre para o banqueiro. Dos miseráveis para os ricos, o fluxo monetário ? com bases eleitoreiras ? foi forte, por anos.
Quais são os projetos mais estruturados?
Estou na montagem de Povos selvagens, um filme que se passa na Venezuela e trata de antropólogos americanos que pesquisaram os índios ianomâmis, num registro muito controverso. Isso, por ter havido financiamento pela comissão de energia atômica norte-americana. Entreguei, há uma semana, o primeiro tratamento do roteiro de Marching powder para a Plan B, a companhia produtora do Brad Pitt. Trata da história verídica de um traficante de drogas inglês, Thomas McFadden, que é preso na Bolívia, e terá o Don Cheadle (Hotel Ruanda) no papel principal. Estou desenvolvendo um roteiro ainda para a Universal Pictures, The sigma protocol. Sou diretor de todos os três projetos.
E a continuação de Tropa de elite, que tanto influenciou o cinema e a tevê?
A gente vai fazer. Aliás, não é uma influência minha, mas do filme que foi feito por uma série de pessoas. Mas que, de fato, depois dele, uma monte de filmes passaram a ser feitos sobre a polícia é verdade. Antes dele, não existia um filme ou série de tevê cujo personagem principal fosse um policial. Era um detalhe que diferia de toda a filmografia de todo o resto do mundo. Para o Tropa 2, a gente descobriu história bacana que não repete a profusão de produtos feitos em torno da polícia. O Tropa de elite 2 será feito para além da polícia. Ainda não temos data, mas vamos trazer o elenco de volta, até Wagner Moura.
Fonte: Informe Consea (www.secom.planalto.gov.br/consea/boletins.nsf). Entrevista originalmente publicada em 21/05/09 no Correio Braziliense.