Nas décadas de 1960 e 1970, o designer e professor Victor Papanek, autor do livro “Design for the Real World” (lançado no Brasil com o título “Arquitetura e Design -Ecologia e Ética”) e tido como um dos pioneiros do design sustentável e humanitário, chamava a atenção para o design que percebe e soluciona problemas reais da sociedade.
Numa palestra em 1964, na Rhode Island School of Design, Papanek repudiou o design comercial como sendo “a perversão de uma grande ferramenta”, e convocou os designers a satisfazerem necessidades genuínas em vez de “falsos desejos”. Na época, suas ideias fizeram com que fosse ridicularizado, forçado a se afastar de uma entidade profissional, que, depois, ameaçou boicotar uma exposição no Centro Pompidou, em Paris, caso seu trabalho fosse incluído. Hoje, no entanto, ele é reverenciado. Porém, mais de 40 anos depois, ainda é pequena a preocupação do design com a solução das necessidades reais das populações de baixa renda em todo o mundo.
Soluções para problemas reais
Enquanto o design formal tem a inovação e a estética como seus valores principais e procura atender os interesses da indústria, o design chamado social ou sustentável exige do designer novas qualidades e maiores cuidados, especialmente com a função prática dos objetos; as características culturais das populações para quem são pensados os produtos; os recursos que essas populações dispõem; e os aspectos socioambientais.
Designers, engenheiros, estudantes e professores, arquitetos e empreendedores sociais de todo o mundo estão planejando formas de aumentar o acesso à comida, água, energia, educação, saúde, atividades geradoras de renda e transporte acessível para aqueles que mais precisam deles. Os projetistas trabalham diretamente com os usuários finais de seus produtos, enfatizando a co-criação para responder às suas necessidades. Alguns projetos são patenteados e outros são de código aberto para permitir a fácil disseminação e adaptação, local e internacionalmente.
O design voltado para a sociedade envolve produtos que atendam às necessidades reais específicas de cidadãos menos favorecidos, social, cultural e economicamente; bem como de pessoas com necessidades particulares devido à idade, saúde, limitações físicas ou mentais, etc.
“Design para os outros 90%”
Em recente entrevista à Agência O Globo, a designer Cynthia Smith afirma que “o design pode ter um papel importante no enfrentamento das questões mundiais mais críticas e complexas. Historicamente, designers com formação profissional focaram apenas em uma pequena parcela da população mundial, mas isso está mudando neste novo milênio, na medida em que designers, arquitetos, engenheiros, administradores, responsáveis por políticas públicas e ONGs estão trabalhando diretamente com pessoas com recursos limitados. E colaborando com outros setores para desenvolver soluções de baixo custo que atendam às necessidades de comunidades carentes no mundo todo”. Cynthia é curadora de design socialmente responsável do Smithsonian Cooper-Hewitt, National Design Museum, único nos Estados Unidos dedicado ao design contemporâneo e à história da atividade.
Ela explica que o design social cria soluções para a pobreza, minimiza o impacto ambiental, melhora a qualidade da assistência de saúde e da educação em todos os níveis, aumenta a inclusão social e apoia a diversidade cultural. E defende ser “imperativo que nos comprometamos com um desenvolvimento urbano focado nos mais pobres, dando suporte para que inovem e ampliem a criação de soluções próprias e adequadas a sua cultura. Precisamos fomentar as capacidades em nível local, estabelecendo centros de inovação comunitários, nos quais as pessoas sejam orientadas e tenham acesso a materiais”.
Cynthia Smith é responsável pela série de exposições “Design para os outros 90%”, uma referência à parcela da população que não costuma ser atendida por projetos de design. A iniciativa está afinada a um movimento crescente entre os designers para projetar soluções de baixo custo para estes “outros 90%”. Através de parcerias locais e globais, indivíduos e organizações estão encontrando maneiras únicas para enfrentar os desafios básicos de sobrevivência e progresso enfrentados por pobres e marginalizados do mundo.
A série teve início em 2007 e na primeira edição exibiu projetos de produtos para ajudar pessoas a enfrentarem a pobreza ou superarem um desastre natural. Um dos projetos apresentados na exposição aproveita os escombros do furacão Katrina para produzir móveis em Nova Orleans. Outro, permite que mesmo os agricultores mais pobres acessem água no subsolo para usar na época da seca e aumentar a produção, por meio de uma bomba de baixo custo movida a pedal, desenvolvida pelo designer norueguês Gunnar Barnes.
Outros projetos exibidos:
AquaStar
Foi criado para ser vendido para consumidores de alto poder aquisitivo e, com este dinheiro, custear um produto similar de baixo custo para países em desenvolvimento. A água contaminada é colocada no frasco e exposta à luz UVC, que danifica o DNA e o RNA de patógenos, tornando-os inativos. Uma versão foi criada para tratar maiores volumes de água, o que pode também gerar renda para as comunidades. Atualmente em uso em Bornéo, Malásia, Índia, México, Peru, Nicarágua, Guatemala, Austrália e Nova Zelândia.
Global Village Shelter
As tendas de baixo custo são feitas de material laminado biodegradável. Fornecem abrigo temporário de emergência por até dezoito meses. São pré-fabricadas e não requerem ferramentas para serem montadas ou desmontadas. Os primeiros protótipos foram enviados para o Afeganistão. Já foram usadas em países atingidos por tsunamis na Ásia, na província paquistanesa de Azad Kashmir depois de um terremoto, e no Mississipi, nos Estados Unidos, após o furacão Katrina.
Sierra Portable Light Project
As peças são feitas por tecelãs de San Andreas, na região de Sierra Madre, no México, que aplicam a tecnologia de luz portátil no tecido. O Portable Ligh combina o diodo semicondutor de alto brilho usado nos sinais de pedestres, botões resistentes à água de lavadoras de roupas e baterias recarregáveis de telefones celulares. Pode ser levado pelos donos para onde seja necessário ter luz ou eletricidade. A superfície têxtil permite direcionar, refletir ou distribuir a luz em locais de trabalho. Atualmente é usado em programas piloto no México e na Austrália.
Big Boda load-carrying bicycle
A bicicleta é capaz de carregar centenas de quilos ou dois passageiros adicionais na parte de trás, chamada de cauda longa, sem exigir muito mais esforço do condutor. Foi criada para transportar produtos para fornecedores até feiras livres ou levá-los até a casa de consumidores. Pesa o mesmo que bicicletas comuns sem marchas vendidas no leste africano, mas foi criada para ser mais confortável, segura e ter maior capacidade de carga. É usada no Kenya e em Uganda.
Drip Irrigation System
O sistema foi criado para que fazendeiros pudessem começar um negócio em pequena escala. Os kits são significativamente mais baratos que outros sistemas de irrigação por gotejamento usados em fazendas comerciais. Estudos apontam uma economia de água de 30% a 70% e um aumento da produção em 50%. A qualidade da safra também é melhor. Mais de 600 mil kits são usados hoje na Índia, Nepal, Zâmbia e Zimbábue no cultivo de frutas, milho, trigo e algodão.
Solar Dish Kitchen
O aparelho foi criado para duas comunidades pobres no México na quais as refeições preparadas pelas mulheres em grupos organizados ajudavam a complementar a dieta das crianças e a reduzir custos. O imenso prato em forma parabólica é feito de partes de bicicleta e pequenos espelhos e permite concentrar a luz solar em uma panela ou num fogão na cozinha. Desta forma, é possível obter luz natural e aquecer água além de preparar comida. É usado no México e na Índia.
Bamboo Treadle Pump
O aparelho dá a produtores rurais acesso a fontes de águas subterrâneas durante a seca. A estrutura é feita de bambu. A bomba de sucção consiste em dois cilindros de metal com pistões operados com movimentos semelhantes a passos em dois pedais. Os cilindros podem ser feitos por ferrarias locais. Mais de 1,7 milhão de aparelhos foram vendidos até hoje em Bangladesh, Nepal, India, Mianmar, Camboja e Zâmbia. Já geraram US$1,4 bilhão em renda para a zona rural apenas em Bangladesh, na Índia.
Soluções Brasileiras
Artefatos produzidos por pessoas comuns para satisfazer suas próprias necessidades são comuns nas ruas de pequenas e grandes cidades brasileiras, especialmente nas áreas pobres e periféricas. São carrinhos de comida, churrasqueiras, brinquedos, móveis, utensílios, e outras soluções simples e inteligentes em perfeita funcionalidade e feitas com o uso sustentável dos materiais.
Em 2010, o governo da cidade de São Paulo decidiu transformar um edifício projetado por Oscar Niemeyer, nos anos 1950, em um novo museu: o Pavilhão das Culturas Brasileiras. Para inaugurar o espaço foi organizada a exposição Puras Misturas, realizada de abril a novembro do mesmo ano. Na entrada da exposição foram colocados carrinhos de comida, como o utilizado por um vendedor de café que circula pelas ruas de Salvador (BA), que mistura um caminhão de metal industrializado em miniatura com um baú de madeira, onde ele leva garrafas térmicas de café e também difunde o som da música brasileira através de um tocador de CD.
A comparação entre diferentes objetos feitos com a mesma intenção pode mostrar o quão diversas podem ser as soluções das pessoas para suas necessidades diárias. Utensílios coletados na região Nordeste mostraram maneiras completamente diferentes de improvisar uma churrasqueira. Uma delas reutilizava uma peça de máquina de lavar descartada, outra reciclava restos de metais, e algumas utilizavam cor e decoração.
Fonte: Agência O Globo; Época Negócios; Komuniki Agência de Criatividade; Terceira Metade