A produção audiovisual no Brasil é centralizada e homogeneizada. É o que se constata dando uma rápida passada pelos canais de televisão. Apesar da diversidade cultural e da pluralidade de opiniões existente no páis, o que se vê na TV é uma maioria absoluta de conteúdos ? ficcionais ou jornalísticos ? abordando ou baseando-se na realidade do eixo Rio-São Paulo.
No rádio, apesar da maior oferta de estações, o quadro não se altera. Mesmo que os DJs tenham à sua disposição variados gêneros e diversos estilos musicais, as estações centram-se na promoção da ?parada de sucessos?, dando pouco espaço para as atrações locais. Já no caso das emissoras especializadas em jornalismo, reproduz-se a lógica de rede predominante na TV em experiências como CBN, Bandnews e Jovem Pan.
Este quadro contrasta com o capítulo Da Comunicação Social da Constituição Federal. No seu artigo 221, a Carta Magna estabelece como princípios para a programação das emissoras de rádio e televisão a ?preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas?, a ?promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação? e a ?regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei?.
Elaborado sem grandes polêmicas durante a Constituinte, o artigo é considerado o principal avanço não realizado da Carta de 88 no setor das comunicações. ?É uma medida regulatória que teria importantes implicações culturais e profissionais?, afirma o pesquisador da Universidade de Brasília (UnB) Venício A. de Lima. ?O grande diferencial da democracia nas comunicações brasileiras se daria a partir da regionalização. Se se quer discutir pluralidade e diversidade, não há outra cosia a fazer senão colocar estes artigos em prática?, completa James Görgen, coordenador do projeto ?Donos da Mídia?.
Resistência
A relevância deste dispositivo foi percebida e já em 1990 a deputada Bete Mendes (PT-SP) apresentou um Projeto de Lei para a regulamentação do artigo. A proposta foi reapresentada um ano depois pela deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) sob o número 256. Prevendo percentuais de cotas para a produção regional e independente, o projeto sofreu intensa resistência dos empresários de rádio e televisão.
Os representantes do setor, organizados na Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), alegaram reiteradas vezes que o projeto era inconstitucional, apelando também para o argumento da inviabilidade do cumprimento da proposta. ?Somos absolutamente favoráveis à programação regional, desde que haja regras que possam ser cumpridas pelas partes?, afirmou o então presidente da Abert, Paulo Machado de Carvalho, em um dos debates realizados no Conselho de Comunicação Social para discutir a matéria.
Estagnação
Com os empresários atuando diretamente contra a aprovação da proposta, o PL-256 passou por um calvário de 12 anos até que se alcançasse um acordo que viabilizou sua aprovação na Câmara dos Deputados em agosto de 2003. No Senado, cinco anos após o início de sua tramitação, o projeto – agora sob a denominação de PLC 59/03 – permanece estacionado na Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática, sob a relatoria do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA). ?Há resistência de senadores que têm vínculos com o setor produtivo do audiovisual, principalmente as emissoras de TV repetidoras nos estados, que acham mais conveniente e barato reproduzir a programação nacional sem dar muito espaço para os produtos locais?, analisa a líder do PT na casa, Ideli Salvatti (PT-SC).
Para entidades da área do audiovisual defensoras do projeto, para que o projeto não seja ?engavetado? em uma tramitação sem fim no Senado, é preciso haver uma tomada de posição do governo federal em favor dele. ?A não ser que haja um Estado forte, que tenha maioria no Congresso, não vamos ter como avançar com o projeto Jandira?, aponta Marco Altberg, da Associação de Produtores Independentes para TV (ABPI-TV).
Estrutura centralizada
O principal obstáculo ao avanço do projeto ou de qualquer outra iniciativa que possa valorizar a produção local e independente nas grades de programação das TVs é o modelo de negócios adotado pelo setor desde que o serviço de radiodifusão se expandiu no país, a partir da década de 60. A lógica das ?redes nacionais? funciona com as emissoras locais cobrindo quase todo seu tempo de programação com a retransmissão do conteúdo produzido pelas ?cabeças?, localizadas nas capitais paulista e carioca. As emissoras locais arrecadam recursos dos anunciantes da região oferecendo, em troca, a audiência garantida pela programação nacional. Já as ?cabeças? garantem, com a diversificação das ?praças?, a capilarização da audiência das redes e ainda recebem parte do dinheiro obtido a partir dos anúncios publicitários vendidos pelas afiliadas.
?A indisponibilidade progressiva de talento local, somada à fragilidade econômica do mercado anunciante na maioria das praças fora do eixo Rio-SP, levou a uma situação em que as emissoras locais e regionais converteram-se, praticamente, em meras repetidoras das redes nacionais, veiculando um número irrelevante de programas próprios, de qualidade sempre inferior àqueles produzidos pelas redes?, diz Rosário Pompéia, pesquisadora que se dedica ao tema das indústrias culturais regionais. Ela completa lembrando que este modelo não se caracteriza apenas pela centralização territorial, mas também pela concentração da produção nas cabeças-de-rede, barrando a veiculação de programas independentes.
A inversão desta lógica das redes nacionais teria de partir de uma regulação voltada para este fim. ?A idéia-base seria o modelo norte-americano: obrigatoriedade de muitas horas regionais e 70% de produção independente no horário nobre?, sugere Marco Altberg. Em 1970, a Suprema Corte daquele país emitiu a decisão Financial Interest and Syndication Rules (Fin-Syn) limitando as horas de programação produzidas pelas próprias redes. A medida, que vigorou até 1995, incentivou um forte mercado de produção independente no país.