A Câmara dos Deputados do Brasil aprovou, na última quarta-feira, 19 de agosto, em segunda instância uma a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 171 em favor da redução da maioridade de responsabilidade penal para delitos graves. Em uma votação que se estendeu até a noite desta quarta-feira, 320 deputados votaram em favor da Proposta, 152 se mostraram contrários e um se absteve.
Uma vez aprovada pela Câmara baixa, o seguinte passo do processo para a aprovação desta Emenda Constitucional é sua votação no Senado. Esta Proposta promove a redução da maioridade penal, de 18 para 16 anos, para os “cremes hediondos” (graves), entre os quais estão o estupro, sequestro, roubo seguido de morte e o homicídio qualificado, além do homicídio intencional e a lesão corporal seguida de morte.
O governante Partido dos Trabalhadores (PT), da presidenta Dilma Rousseff, e outras forças de esquerda votaram contra a medida, com o argumento de que modificar a idade de responsabilidade penal não reduzirá as taxas de insegurança e violência no país. No entanto, esta medida conta com o respaldo do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que apesar de ser membro do oficialista Partido del Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), a formação majoritária na coalizão de governo, declarou sua postura pessoal de oposição ao Executivo.
Cunha é um dos políticos investigados à raiz do gigantesco escândalo de corrupção na petroleira estatal Petrobras, e, na quarta-feira, antes da votação da PEC, descartou que vá renunciar à Presidência da Câmara dos Deputados, como pedem sues detratores.
No início de julho, Cunha conseguiu a aprovação da PEC em primeira instância de forma polémica, ao colocar o projeto na pauta de votações pela segunda vez em menos de 24 horas, depois de não ter conseguido levar adiante uma primeira proposta e conseguir depois com algumas modificações no texto original.
Diferente da proposta original, foram excluídos na nova iniciativa os crimes de terrorismo, lesão corporal e tráfico de drogas, e foi anexado que os menores, entre 16 e 18 anos, julgados como adultos passem a cumprir suas penas em centros de reclusão diferentes das atuais prisões. Apesar de que tenham se pronunciado contra a medida, importantes organismos internacionais, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e o Unicef [Fundo das Nações Unidas para a Infância], as sondagens indicam que a maioria da população aprova a Emenda.
A atual legislação determina que a reclusão de menores em reformatórios tenha um máximo de três anos, e os legisladores oficialistas contrários à PEC aprovada propõem que esse período poderia ser aumentado para entre oito e 10 anos, sem ter que reducir a idade de responsabilidade penal (1).
“A prisão brasileira não reabilita ninguém”
A esquerda progressista e os defensores dos direitos humanos, destacados acadêmicos, como Sergio Paulo Pinheiro, recordam que a redução da idade penal não garante por si só uma diminuição da violência. “Não tem nenhum sentido. É uma tolice, e mais se levamos em conta que o sistema penitenciário brasileiro não recupera ninguém. 80% dos presos reincidem e voltam à prisão”, afirma Jailson Silva, fundador da ONG Observatório de Favelas (2) e professor universitário. “É uma solução conservadora, que foi colocada na agenda pública”, acrescenta Alexandre Siconello, assessor de Direitos Humanos da Anistia Internacional (AI).
Os dados mostram um panorama desolador. No último ano, disparou o número de menores presos após cometerem algum tipo de delito. No Rio de Janeiro, por exemplo, a cada hora é registrada uma detenção de crianças ou adolescentes. Em 2014, foram presos 8.380 jóvenes, quase três vezes mais do que em 2010, quando foram 2.806. Destes, 41,53% cometeram crimes relacionados com o narcotráfico; 27,92% praticaram roubos e 13,65% furtos; e 5,23% foram presos com armas.
“Em 2006, mudou a lei sobre drogas, que despenaliza bastante o usuário e mantém a penalização para o traficante. Ao mesmo tiempo, neste período, aumentaram muito os crimes relacionados com o narcotráfico. Hoje, 25% da população carcerária são formadas por pequenos traficantes. A maioria são jovens negros”, afirma Alexandre Siconello, da AI.
Jailson Silva confirma este dado e critica que os sistemas judicial e penitenciário não se propõem a fazerem um trabalho específico com esse tipo de jovens. “O primeiro passo é reconhecer que a política de drogas é um fracasso completo. Hoje, o número de presos por este motivo é absurdo. A primeira coisa que teria que ser feita é despenalizar a venda de todas as drogas e regulá-la, de forma diferente, segundo a substância”, defende o professor.
No mesmo ano em que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completa um quarto de século, especialistas e ativistas coincidem em que a situação está cada vez pior. Crescem os índices de violência, mas com um matiz: dos 21 milhões de adolescentes brasileiros, apenas 0,013% cometeu atos contra a vida, segundo dados do Unicef. 90% dos crimes de adolescentes são roubos e outros atentados contra a propriedade (3).
Membros do Comitê de Direitos da Criança da ONU, como a sua vice-presidenta, Sara Oviedo (Equador), dizem NÃO à redução da maioridade penal no Brasil (4).
Relatoria sobre os Direitos da Infância se manifesta contra a redução da idade de imputabilidade penal
A relatora sobre os Direitos da Infância da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, comissionada Rosa María Ortiz, culminou sua visita ao Brasil, que teve lugar de 1º a 03 de julho de 2015, e que incluiu Brasília e São Paulo. O objetivo foi promover os direitos das crianças e adolescentes no país e expressar que a proposta de reforma constitucional para rebaixar a idade de imputabilidade penal de 18 para 16 anos para o caso de delitos graves é contrária aos estandartes interamericanos de direitos humanos.
Durante a sua visita, a relatora foi recebida por deputados e senadores, e se reuniu com organizações da sociedade civil e com líderes religiosos para tratar da temática. Em 03 de julho, a relatora participou de uma audiência pública na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), convocada pelo presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alesp e pela ONG Visão Mundial. Participaram também da audiência pública vereadores do município de São Paulo, representantes do Movimento Nacional de Direitos Humanos, da Visão Mundial, da Universidade de São Paulo (USP), da Rede Evangélica Nacional de Ação Social (Renas), e jovens da comunidade de Lins de Vasconcelos, no Rio de Janeiro, uma das zonas mais afetadas pela violência. Durante a sua viagem, a relatora também se encontrou com jovens da região de Capão Redondo, Estado de São Paulo, e de Lins de Vasconcelos, e da cidade de Nova Iguaçu, Estado do Rio de Janeiro, para dialogar sobre as condições de vida e de segurança nas zonas onde eles vivem, muito afetadas pela violência e o clima de insegurança.
A relatora expressou profunda preocupação com a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 171, debatida pela Câmara dos Deputados do Brasil, que busca modificar a Constituição Federal de 1988, para reduzir a idade de imputabilidade penal de 18 para 16 anos, para delitos contra a vida e crimes considerados graves. Durante os días em que transcorreu a viagem, a Proposta foi rechaçada na Câmara dos Deputados e colocada de novo para votação na mesma Câmara, com a introdução de algumas mudanças em seu enunciado. A votação teve lugar com menos de 24 horas de diferença da anterior, ocasião na qual a Proposta foi aprovada. Para levar a cabo a mudança na Constituição brasileira, a Proposta ainda deveria passar por uma segunda rodada de votação na Câmara dos Deputados e se aprovada em dois turnos de votação no Senado Federal.
Na viagem, a relatora salientou que os instrumentos internacionais estabelecem que são “crianças” todas aquelas pessoas menores de 18 anos de idade e que os estandartes estabelecidos pela Convenção Americana, a Convenção sobre os Direitos das Crianças e pela Comissão e a Corte Interamericanas de Direitos Humanos são inequívocos em garantirem o tratamento diferenciado e especializado às pessoas menores de 18 anos em conflito com a lei penal. A comissionada Ortiz afirmou que a Proposta ademais violaria o princípio de não regressividade em matéria de direitos humanos já garantidos. A Propuesta de redução da idade penal constitui uma grave violação dos direitos fundamentais dos adolescentes e está contra os tratados internacionais ratificados pelo Brasil.
A Constituição Federal brasileira, atualmente, estabelece que as crianças e adolescentes menores de 18 anos não podem ser responsabilizados da mesma maneira que os adultos por suas condutas de infração às leis penais, e estabelece um sistema de justiça juvenil diferenciado, em atenção à condição de desenvolvimento das crianças e adolescentes. A Constituição e o ECA atuais são concordantes com os estandartes internacionais de direitos humanos, ainda que sua implementação precise ser reforçada. A Propuesta de reforma constitucional retrocede nos avanços legais alcançados pelo Brasil. A relatora destacou que “o Brasil foi o primeiro país no Continente a traduzir a Convenção sobre os Direitos da Criança em uma lei específica para a infancia, com o Estatuto da Criança e do Adolescente, e esta foi uma boa prática, que inspirou e influiu positivamente em toda a nossa região”.
A relatora também saudou os avanços em matéria legislativa e institucional em relação ao Sistema de Garantia de Direitos para a infância, particularmente O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a entrada em vigor da Lei nº 12.594, em 2012, que regulamenta as medidas socioeducativas e estabelece o Sistema Nacional de Atenção Socioeducativa (Sinase) para os adolescentes em conflito com a lei, além de assentar a justiça restaurativa como princípio da justiça juvenil. Entretanto, adverte que o Sinase precisa ser fortalecido para cumprir com a sua função de reabilitação e que, por sua vez, este atua de forma complementar ao Sistema de Garantia de Direitos, que também deve ser reforçado para abordar as causas que levam adolescentes a cometerem delitos.
Crianças e adolescentes são mais vítimas do que agressores
Durante a visita, a relatora assinalou que os adolescentes são um dos grupos mais afetados pela violência no país. Segundo dados oficiais, a violência foi a principal causa de morte nos últimos 12 anos entre os adolescentes. Em 2012, 36,5% dos adolescentes entre 10 e 18 anos de idade, que perderam a vida, foram vítimas de um homicídio e, como resultado da violência, em contraposição aos 4,8% do conjunto da população. Também em 2012, 56.000 pessoas foram assassinadas no Brasil, das quais 30.000 eram jovens entre 15 e 29 anos e, deste total, 77% eram afrodescendentes. A maioria desses homicídios é praticada com armas de fogo e menos de 8% dos casos chegam a serem julgados. Além de serem vítimas da violência letal, as crianças também são diariamente vitimizadas por outras formas de violência, no lar, na escola, inclusive, pelas forças de segurança do Estado. A comissionada disse que, “nos entornos nos quais crescem as crianças, proliferam as armas de fogo, o tráfico de drogas e a presença de organizações criminosas, com habituais enfrentamentos armados e pressões dos grupos delitivos”.
Crianças e adolescentes não são os algozes, mas as principais vítimas da violência no país.
No entanto, as crianças são acusadas de serem as principais responsáveis pelos delitos graves no Brasil. Mas, contrariamente ao que se crê, dados recentes do Unicef indicam que dos 21 milhões de adolescentes brasileiros, apenas 0,013% cometeu delitos contra a vida. A vinculação dos adolescentes à criminalidade está limitada, em grande parte, a delitos patrimoniais ou relacionados con o microtráfico de drogas, os quais se relacionam, na opinião da comissionada, “com o entorno socioeconômico de exclusão e discriminação da infância pobre e afrodescendente, em um contexto de urbanização desorganizada, que não consegue oferecer condições de vida dignas, e a insuficiência de políticas sociais do Estado em matéria de prevenção da violência e garantia de direitos”. A relatora também assinala que escutou dos parlamentares que há uma demanda cidadã contra a imunidade dos adolescentes. A respeito observa: “é preocupante a inadequada informação, pois não existe tal imunidade, já que as crianças que cometem atos delitivos são responsabilizadas pelos mesmos a partir dos 12 anos, através de um sistema de justiça juvenil que tem como objetivo a reabilitação e ressocialização da crianças, tal sistema, sim, deve ser melhorado.”
Alternativas à redução da idade penal: prevenção e fortalecimento do ECA
A relatora enfatizou que, segundo suas obrigações internacionais, o Estado do Brasil deve adotar medidas dirigidas à prevenção da vinculação de crianças e adolescentes com a criminalidade e a violência. Ademais reiterou que o Estado deve, sobretudo, implementar políticas de apoio às crianças, às suas famílias e comunidades, além de fortalecer as políticas sociais que garantam o acesso a direitos para as comunidades mais excluídas e o sistema de proteção da infância previsto no ECA. Em suas intervenções, também recomendou que o Brasil promova reformas nos sistemas de segurança, com revisão das estratégias policiais para uma polícia mais amigável com a população, e sejam destinados esforços para o fortalecimento da cidadania entre as crianças e adolescentes.
A relatora insistiu na importância de escutar diretamente os jovens: “O que vi durante a minha visita é que nenhum adulto vê com tanta clareza e fala sobre o contexto da violência como estas crianças. Enquanto que os adultos escrevem teses, tecem comentários longos, estes jovens podem expressar a situação em cinco minutos, já que esta é sua experiência e podem ser parte da solução”.
(1) http://www.diariouno.com.ar/mundo/Brasil-aprobo-la-reduccion-de-la-edad-penal-de-18-a-16-aos-20150820-0050.html
(2) http://www.observatoriodefavelas.org.br/
(3) http://www.elconfidencial.com/mundo/2015-05-18/un-brasil-asolado-por-la-delincuencia-quiere-condenar-a-sus-menores_794865/
(4) https://www.youtube.com/watch?v=BoM-mce3QhA
*Cristiano Morsolin, pesquisador e trabalhador social italiano radicado na América Latina desde 2001, com experiências no Equador, Colômbia, Peru, Bolívia, Brasil. Autor de vários livros, colabora com a Universidade do Externado da Colômbia, Universidade do Rosário de Bogotá, Universidade Politécnica Salesiana de Quito. Co-fundador do Observatório sobre a América Latina SELVAS (Milão), pesquisa a relação entre os movimentos sociais e as políticas emancipatórias.
BLOG: https://diversidadenmovimiento.wordpress.com/
Fonte: Adital