Mulheres e crianças aparecem no topo das estatísticas do Núcleo de Atendimento às Vítimas de Crimes Violentos (NAVC). Durante 2004, foram realizados cerca de 3 mil atendimentos pelo Núcleo nas áreas de assessoria jurídica e psicológica, serviço social e psiquiatria. Esse perfil, embora refira-se apenas às pessoas que buscaram o apoio do Núcleo, revela outro lado da violência: o patriarcalismo e a fragilização do sexo feminino e da infância, traços característicos da nossa sociedade que encontram-se arraigados em nossas formas de convívio.
Dos casos atendidos pelo Núcleo, entre janeiro e dezembro do ano passado, 47% eram referentes a pessoas com idades entre 0 e 20 anos ? nessa faixa etária, o maior percentual está entre 0 e 10 anos, com 22%. As meninas e as mulheres também predominam nas estatísticas do atendimento: 58% do total de casos atendidos pelo Núcleo envolvem pessoas do sexo feminino. Flávia Santana, psicóloga e sub-coordenadora do NAVC, inclui tanto a violência contra a mulher, quanto a contra a criança, como frutos das relações de gênero na sociedade brasileira em que, injustamente, prevalece o poder do sexo masculino contra o feminino. Ela frisa, entretanto, que nos casos em que a vítima é um menino ou uma menina, há uma menor visibilidade dos atos violentos. Comprar o silêncio de crianças ou chantageá-las para que não contem nada, são atitudes comuns dos agressores.
Formas da violência
Segundo Marlize Matos, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher da UFMG (NEPEN) e da Rede Brasileira de Estudos e Pesquisas Feministas, não há estudos comprovando que a pessoa agredida na infância irá, no futuro, tornar-se um agressor. Porém, ela chama a atenção para o fato de que crianças criadas em um ambiente onde atos violentos são comuns, familiarizam-se com esse tipo de comportamento, aumentando as possibilidades da violência ser levada para sua vida adulta. Afinal, os pais são um exemplo para os filhos, são eles que ensinam os limites para a criança. Se o adulto não tem condições de realizar essa função adequadamente, a educação desse menino ou menina ficará comprometida.
A pesquisadora cita o exemplo das pessoas que cometem abuso sexual que, em grande parte, foram vítimas desse mesmo tipo de abuso durante a infância. Outra conseqüência do contato com a violência durante a infância é apontada por um estudo feito entre 2000 e 2001 pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, que mostrou que os filhos de 5 a 12 anos criados em famílias em que a mulher é submetida à violência apresentam mais problemas, como pesadelos, chupar dedo, urinar na cama, ser tímido ou agressivo.
Em relação à violência sexual, Marlize atenta para o fato das noções de prazer e desprazer serem bem próximas durante a infância. Isso significa dizer que, por exemplo, em casos de violência sexual a criança não distingue se aquilo é bom ou ruim para ela. Assim, muitas vezes, só irão perceber realmente a agressão quando forem mais velhas ? o que pode acarretar em problemas relacionados à sexualidade.
Uma questão cultural que chama a atenção é que as próprias mães e professoras costumam ser responsáveis pela socialização das crianças dentro dos padrões tradicionais de gênero. ?Não que elas sejam culpadas por isso?, explica Marlize, ?mas há essa reprodução dos preconceitos de gênero tão presentes em nossa sociedade?.
A pesquisadora explica que, embora as mulheres tenham avançado muito no âmbito da vida social, a esfera privada continua intocada. Assim, o homem continua como chefe da casa e o poder lhe serve como garantia de sua posição de autoridade. Essa situação, ao contrário do que muitos pensam, não é característica apenas das classes mais baixas e ocorre em toda a sociedade.
Infância
Agressão física e abuso sexual não são as únicas formas de se violentar uma criança. Robson de Souza, pesquisador do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (CRISP), acrescenta que negligência, abandono e violência psicológica também devem constar entre as agressões contra meninos e meninas. Embora não envolvam o contato físico entre agressor e vítima, essas formas de violência são tão prejudiciais quanto as outras, podendo acontecer combinadas entre si.
Segundo Robson, a violência, geralmente, é praticada por alguém próximo à vítima, o que dificulta ainda mais sua constatação. Para o pesquisador, há um grande problema relacionado à sub-notificação dos casos, dificultando a medição do número de agressões. Ele fala que o aumento registrado pelas estatísticas pode ser oriundo de um maior número de denúncias, e não do crescimento dos atos violentos em si. Entretanto, independente do motivo, Robson ressalta a importância da denúncia para o controle e o combate à violência.
NAVC
O Núcleo de Atendimento às Vítimas de Crimes Violentos existe desde dezembro de 2000, atendendo a casos de homicídio, atentado violento ao pudor, estupro e latrocínio. São oferecidos apoio social, psicológico e jurídico à vítima e seus familiares ou a pessoas muito próximas que sofrem com a perda e com os efeitos da violência ocorrida. O programa é uma parceria entre a Secretaria Especial de Direitos Humanos e a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social e Esportes, com o gerenciamento da ONG SOS Racismo. O telefone do NAVC é (31)3214-1898.