21/09/2017 | Tem ganhado força no governo federal a tese do Marco Temporal, segundo a qual os povos indígenas só teriam direito às terras que estavam sob sua posse em 5 de outubro de 1988, ignorando que várias comunidades indígenas foram tirados de seus territórios tradicionais à força. Esta interpretação jurídica tem como base uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de 2009, relacionada à Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.
Oito anos depois, em 19 de julho de 2017, o governo do presidente Michel Temer (PMDB) autorizou um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) determinando que “toda a administração pública federal observe, respeite e dê efetivo cumprimento” à tese do marco temporal nas análises para demarcação de terras indígenas. A decisão, que atende ao lobby da bancada ruralista no Congresso, pode barrar a regularização de territórios tradicionais no país.
Temer aprovou a iniciativa num momento em que buscava consolidar votos da bancada ruralista para se livrar da denúncia por corrupção passiva apresentada por Janot ao Supremo Tribunal Federal (STF). A iniciativa surtiu efeito: a maioria da Câmara barrou o andamento da denúncia.
Repúdio
A aprovação do parecer da AGU pelo governo causou manifestações de organizações que defendem os direitos dos índios, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e o Conselho Indígena de Roraima (CIR), e também do Ministério Público Federal (MPF). As organizações indígenas pediram à Procuradoria-Geral da República (PGR) para ingressar com uma ação suspendendo a decisão.
O vice-procurador-geral da República, Luciano Mariz Maia, entende que o marco temporal para demarcação de terras indígenas é o estabelecido desde a Constituição de 1934, e não uma linha de corte a partir de 1988, ano da Constituição Federal vigente. Ele afirmou que, como vice-procurador-geral de Raquel Dodge, vai atuar para destravar a demarcação de terras indígenas.
O raciocínio jurídico que ele levará em conta é de que a Constituição de 1934 estabeleceu parâmetros para a demarcação, de forma que terras indígenas não podem ser consideradas devolutas, devendo permanecer com os índios.
A relatora especial para os direitos dos povos indígenas da Organização das Nações Unidas (ONU), Victoria Tauli-Corpuz, considera que o parecer de Temer desrespeita o décimo artigo da Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, que diz respeito ao direito aos territórios de origem. “Os indígenas viveram em seus territórios desde sempre, de seus ancestrais até o presente. Colocar uma linha do tempo em cima disso para demarcar as terras é violar a Declaração”, opinou.
Victoria disse ainda que a situação política atual do Brasil é uma prova da fragilidade dos direitos indígenas. “No passado, o Brasil foi um líder em relação ao respeito desses direitos. Mas os eventos recentes estão mostrando que essas políticas podem facilmente ser desmontadas se um novo governo vem ao poder”.
Vitória indígena não afasta ameaças
No dia 16 de agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) discutiu duas ações que contestavam a demarcação de terras indígenas no país, com pedido de indenização do estado do Mato Grosso pela demarcação do Parque do Xingu e das terras Pareci e Utiariti (povo Pareci) e Nambikwara, Salumã e Tirecatinga (do povo Nambikwara). A decisão foi unânime: 8 votos a 0 pela improcedência das ações. Além de não obter as indenizações, o Estado foi também condenado a arcar com os R$ 100 mil de despesas decorrentes dos custos dos processos.
Leila Saraiva, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), afirma que “embora a tese do marco temporal não tenha se consolidado no julgamento realizado esta semana no STF, tendo sido até mesmo combatida por alguns ministros, a bandeira ruralista está longe de ter sido derrotada”. E completa: “enquanto o STF não discutir (e derrubar) o marco temporal, as demarcações indígenas continuam sob o julgo desta portaria e, consequentemente, encontram-se ainda mais ameaçadas. Se é verdade que podemos celebrar o julgamento do dia 16 de agosto como uma vitória, a resistência a essa e a outras medidas inimigas dos povos indígenas não pode se desarticular”.
Marco temporal legaliza violações
O Instituto Socioambiental (ISA) alega que, “na prática, o marco temporal legitima e legaliza as violações e violências cometidas contra os povos até o dia 04 de outubro de 1988: uma realidade de confinamento em reservas diminutas, remoções forçadas em massa, tortura, assassinatos e até a criação de prisões. Aprovar o “marco temporal” significa anistiar os crimes cometidos contra esses povos e dizer aos que hoje seguem invadindo suas terras que a grilagem, a expulsão e o extermínio de indígenas é uma prática vantajosa, pois premiada pelo Estado brasileiro. A aprovação do marco temporal alimentará as invasões às terras indígenas já demarcadas e fomentará ainda mais os conflitos no campo e a violência, já gritante, contra os povos indígenas”.
Fontes: O Globo, Brasil de Fato, Inesc, Carta Capital, ISA
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