Girleide Maria Alves de Oliveira, administradora da Cerâmica Serra da Capivara, fala sobre o projeto, a participação da comunidade na fabricação da cerâmica e na preservação da Serra da Capivara.
Mobilizadores COEP – O que é e o que motivou o desenvolvimento do projeto cerâmica Capivara? Quantas pessoas estão envolvidas?
R. A cerâmica Serra da Capivara foi implantada, em 1993, na região do entorno do Parque Nacional Serra da Capivara (Parna). O objetivo era garantir a subsistência da comunidade de Barreirinho, situada no município de São Raimundo Nonato, no Piauí. Queríamos implantar uma cultura diferente para que as pessoas que ali moravam tivessem uma renda consistente, e, em contrapartida, preservassem e criassem uma estabilidade no que chamamos de cinturão de proteção do Parna. Começamos com três pessoas e hoje conseguimos o objetivo de ter toda a comunidade envolvida com o projeto e cumprindo também sua parte. Somos 27 famílias envolvidas no projeto.
Mobilizadores COEP – Quais as características do povoado do Barreirinho e da população local? (abordar as características sociais, culturais e econômicas) O que mudou na vida da comunidade com a instalação do projeto?
R. O Barreinho é uma comunidade rural, situada na zona de transição entre a Caatinga e o Cerrado, no entorno do Parque Nacional Serra da Capivara. A maior parte da população é composta por pequenos agricultores e artesões. Antes do projeto, convivíamos um cenário de miséria, prostituição e depredação do meio ambiente, especialmente depredação da fauna e da flora características da caatinga e do patrimônio cultural do Parque, que são as pinturas rupestres e os vestígios desse sítio arqueológico brasileiro. A partir do projeto, a população local foi envolvida na produção de peças, como louças e vasos, decoradas com símbolos semelhantes às pinturas rupestres. Hoje, somos considerados uma comunidade independente, cujos moradores mantém seus filhos na escola – uma exigência da administração do projeto – e que conseguem manter economicamente suas famílias.
Com a implementação da cerâmica, a comunidade foi incluída na rota de visitação da Serra, e com isso foi implantada na comunidade uma cantina, que serve refeição, lojinhas que vendem artesanato e um albergue para hospedar os visitantes.
Mobilizadores COEP – Os moradores já trabalhavam com cerâmica? Como foi o processo de implantação do projeto? Houve a participação da comunidade na definição das ações? De que forma?
R. Os trabalhadores, antes do projeto, eram pequenos agricultores e caçadores. Tinham como cultura local a plantação de milho, feijão e caçavam no entorno do parque.
O projeto foi implantado pela Fundação do Homem Americano, na gestão da professora Niéde Guidon. Eram 5 projetos com a idéia de formação de uma cultura de subsistência, de forma que mantivessem os moradores no entorno da unidade de conservação sem agredir o meio ambiente. Para isso, foram implantados cursos nas escolas locais que se tornaram disciplinas. Por exemplo, na aula de desenho, aprendia-se a reprodução da pintura rupestre; na aula de educação artística, aprendia-se a fazer cerâmica. As aulas eram abertas a todos da comunidade.
Todos os projetos tiveram um técnico que dava o suporte na implantação dos projetos. No caso do projeto da cerâmica, o técnico fez um estudo com uns 700 tipos de argila, das quais ele selecionou 3 que serviriam para a fabricação da cerâmica, que nesse projeto específico, tinha a intenção de trabalhar com a queima da cerâmica em alta temperatura.
Mobilizadores COEP – Quais foram as principais dificuldades encontradas na implantação da fábrica de cerâmica? Como foram resolvidas?
R. Como todo projeto social no Brasil, ele demorou a evoluir. As pessoas treinam, treinam, treinam mas não fazem o principal, vender, que é o que da a garantia para que as pessoas confiem no projeto. Se você aprende uma cultura nova mas não sobrevive dela, então, logicamente você vai voltar para a antiga.
Uma das dificuldades foi manter a venda mensal das peças produzidas para que fosse possível sobreviver como negócio, já que temos um produto não muito conhecido e que tem um custo muito alto de confecção. Em 2000 a Fundação resolveu investir um pouco mais nessa área de venda e me contratou, sou Administradora de Empresa. Então começamos a vender em feiras e depois conseguimos colocar produtos em algumas lojas. Começamos a viajar também, porque não dá para vender só aqui no nordeste. Participamos de feiras em Brasília, Belo Horizonte e em outros locais. Também melhoramos a qualidade dos produtos, apesar de rústicas demos um acabamento mais fino e moderno.
Outra dificuldades foi manter a comunidade acreditando que é possível viver de artesanato, até mesmo onde estamos, no sudoeste do Piauí, já que temos grandes problemas de escoação do produto. As próprias transportadoras, na maioria das vezes, se recusam a transportar as peças por causa de sua fragilidade e devido às más condições das estradas. Há também a questão da diferença de preço da Cerâmica Serra da Capivara em relação a uma cerâmica comum. Nossa cerâmica é de alta temperatura, queima a gás. E o gás, fundamental para a produção, tem de ser trazido de Juazeiro (BA), que fica a 459 quilômetros de distância da comunidade. E o tempo de traslado é de nove horas, devido a má conservação da estrada. Com isso, o custo do gás representa quase 40% de nossas despesas fixas. Há muitas e muitas outras dificuldades, porém, como bons brasileiros e teimosos nordestinos, continuamos acreditando e nos ajudando.
Mobilizadores COEP – A extração da argila para fabricação da cerâmica gera degradação ambiental a longo prazo. É feito algum trabalho ambiental nas áreas de extração? O projeto tem outras iniciativas ambientais? Como era o envolvimento da população com o meio ambiente antes dessa iniciativa?
R. A Cerâmica Serra da Capivara não extrai argila. Utilizamos argila de decantação. Ou seja, na época da seca, como estamos em uma região semi-árida, fazemos limpeza nos pequenos barreiros e barragens, armazenamos esta argila, e a utilizamos durante todo o ano, até a próxima seca. Então, ajudamos as pessoas da comunidade, fazendo limpeza em suas pequenas barragens, e usamos esta argila, sem agredir em nenhum momento o meio ambiente. Isto nos deu um Certificado de Meio Ambiente emitido pela Secretaria de Meio Ambiente do Estado, além do que termos acompanhamento constante do Ibama, nos orientando onde devemos limpar as barragens.
Com relação a preservação ambiental dentro da comunidade, a responsabilidade é da própria comunidade, ou seja, ela própria se fiscaliza. Eles identificam o problema e procuram resolver eles mesmos. Até porque, todos as pessoas que trabalham aqui, obrigatoriamente tem que morar no entorno do parque.
Mobilizadores COEP – De que forma o projeto ajuda a proteger o patrimônio cultural e ecológico do Parque Nacional Serra da Capivara?
R. Na produção de suas peças, a Cerâmica Serra da Capivara tem a preocupação de retratar a cultura local em dois níveis: no design e nas técnicas de fabricação. No primeiro caso, desde a pré-história os povos que habitavam essa região trabalhavam com argila na fabricação de cerâmica com finalidades diversas: para enterramentos, com urnas funerárias e peças utilitárias, como comprovam as pesquisas arqueológicas na região. Portanto, foi uma opção consciente retratar nas peças réplicas das pinturas rupestres encontradas nos paredões que formam o grande patrimônio cultural do maior complexo de sítios arqueológico das Américas, já tombado pela Unesco. O trabalho desenvolvido pelos artesãos tem beleza, funcionalidade e também o valor social agregado que contribui com o desenvolvimento da região e protege o patrimônio cultural e ecológico do Parque.
Mobilizadores COEP – Como e onde as peças produzidas são comercializadas? É oferecida alguma capacitação aos artesãos quanto a design, padrões de qualidade, formação de preço e comercialização?
R. O design é desenvolvido e aprovado pelos próprios artesãos, e fazem parte da equipe, além dos artesãos um gerente de produção e eu que sou a administradora. A qualidade é o cartão de visita da cerâmica. Todos se esforçam para manter este padrão de qualidade e quando trabalhamos com grandes centros, há um nível de exigência maior. O que devemos é trabalhar, atender e manter o nível que propomos e vendemos. A maior parte da produção das peças é vendida em grandes redes de lojas de decorações em oito estados brasileiros. O restante é exportado para a Itália. Atualmente, estamos em negociação e provavelmente vamos exportar também para a Holanda e Grécia.
Mobilizadores COEP – Que recomendações vocês dariam para comunidades que pretendem trabalhar com cerâmica?
R. Tornar seu projeto um negócio. A partir da hora que for negócio, tiver qualidade e responsabilidade, brevemente dará retorno. Com muitas dificuldades, é claro, porém sempre melhorando seu produto, você estará sempre em evidência. A Cerâmica Serra da Capivara é um produto politicamente correto, ecologicamente “perfeito” e socialmente justo. Estes parâmetros são nossos ideais de conquista, da comunidade e da administração.
Entrevista concedida à: Marize ChicanelEdição: Eliane Araújo
Esperamos que tenham gostado da entrevista. Lembramos que o espaço abaixo é destinado a comentários. O entrevistado não se compromete a responder as perguntas aqui postadas.